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O que nos cabe diante da dor alheia

Não conheço Dona Ruth Moreira. Não sei se ela é rígida ou doce, generosa ou dura, impulsiva ou contida. Também não conheço Murilo Huff. Sei apenas que, em comum, ambos perderam Marília — uma filha para ela, a mãe de seu filho para ele. E isso já deveria bastar para que nos lembrássemos de uma regra elementar da vida: a dor não é espetáculo, e o luto não é postagem de rede social.

Passaram-se pouco mais de três anos desde que o Brasil inteiro parou para lamentar a morte de Marília Mendonça. Dor legítima, coletiva, porque sua voz fazia parte do cotidiano de milhões. Mas quando a comoção vira vigilância e julgamento, algo se corrompe. E o que estamos vivendo agora, diante da disputa pela guarda de Léo, o filho de Marília com Murilo Huff, da administração do legado artístico, das decisões sobre seguros, heranças e empresas, não é luto — é a transformação da dor em tribunal midiático.

É verdade: Léo é herdeiro de uma fortuna e de uma ausência. Herdou a obra da mãe e a responsabilidade simbólica de manter viva uma figura pública que partiu cedo demais. No início, a avó materna assumiu sua guarda. Agora, por decisão judicial e desejo do pai, passará a viver com Murilo Huff. O que para muitos parece reviravolta é, na verdade, parte de uma realidade emocional complexa, onde amor, proteção, dúvida e sobrevivência se entrelaçam.

Não cabe a nós saber o que é melhor para Léo. Nem se Dona Ruth errou. Nem se Murilo está certo. O que nos cabe — e nos falta — é respeito. Respeito pelo silêncio, pelo tempo do outro, pela escolha difícil de quem tenta fazer o que considera certo com aquilo que restou. Não é fácil perder uma filha. Muito menos perdê-la sob os olhos do país inteiro, tendo que justificar cada movimento como se a dor tivesse que passar pelo crivo da opinião pública.

Empatia verdadeira não se dá por afinidade. Não se concede a quem “merece”. Empatia se pratica — especialmente quando não sabemos de tudo. E ninguém sabe. As redes sociais nos vendem a ilusão de que os bastidores estão expostos. Mas o luto real, esse nunca se vê. Ele se recolhe, se esconde atrás de palavras duras, de decisões polêmicas, de silêncios mal interpretados.

Dona Ruth pode ter tomado decisões questionáveis aos olhos de alguns. Murilo pode ter se ausentado, se aproximado, se transformado. Nenhum de nós acompanhou essa história de perto o bastante para julgar. O que podemos — e deveríamos — fazer é lembrar que todos ali estão tentando viver depois do impossível. E que o menino, no centro disso tudo, precisa de menos manchetes e mais cuidado.

A herança de Marília Mendonça é vasta. Há canções, contratos, marcas e agora o Instituto Marília Mendonça. Mas talvez o maior legado que ela nos deixou seja a possibilidade de reconhecermos, na dor dos outros, o espelho da nossa própria finitude. E diante disso, calar é, às vezes, a única forma de dizer: “eu entendo”.

Não há modelo certo para o luto. Não há medida exata para uma mãe que perde. Nem fórmula para seguir vivendo depois que tudo se rompe. Mas há um gesto que ainda nos salva como sociedade: o de não invadir aquilo que não nos pertence. Nem a dor. Nem a decisão. Nem o afeto de um neto por sua avó, nem de um filho por seu pai.

Não conheço Dona Ruth. Mas sei que ela enterrou sua filha. E isso, por si só, é uma ferida que merece silêncio e compaixão. O resto é ruído — e a pressa dos vivos em julgar o que ainda sangra.

Fabrício Correia é jornalista, escritor e produtor cultural. Esteve na último show de Marília Mendonça sem saber que o cumprimento após o espetáculo seria uma despedida.

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