Lima Duarte, 95 anos: o Brasil em carne, osso e contradição

Não é exagero afirmar que Lima Duarte é a própria história da televisão brasileira. Mas reduzir Lima a isso é uma crueldade. Lima Duarte não foi só ator, nem apenas intérprete. Foi, e ainda é, uma consciência. Uma espécie de espelho embaçado do país, que ao longo de quase um século foi limpando esse reflexo com suor, talento e lucidez.

Nascido Aryclenes Venâncio Martins, num canto remoto de Minas Gerais chamado Desemboque, filho de boiadeiro e mulher circense, carregou desde sempre a tensão entre o chão batido e o picadeiro, entre o grito do mato e o aplauso da ribalta. Sua carreira, iniciada ainda nos primórdios da TV, em 1950, não começou por acaso. Começou porque era inevitável. A televisão brasileira nasceu com Lima Duarte dentro dela.

É importante dizer: Lima Duarte nunca foi apenas um ator que colecionava papéis. Ele sempre soube o que fazia. Cada olhar seu, cada silêncio, cada frase mastigada com aquele sotaque que nunca abandonou, vinha carregado de intenção. De crítica. De país.

Em “Roque Santeiro” (1985), foi o inesquecível Sinhozinho Malta. Machista, dono de tudo, dono de nada. Um homem cheio de autoridade e vazio de certezas. Lima sabia o que estava fazendo ali: mostrava um Brasil arcaico que, disfarçado de novela das oito, ainda mandava e desmandava em pleno coração das famílias. Ele não interpretava apenas um coronel caricato. Ele esculpia, com cinzel e sangue, a cara de um país que não se queria ver — mas se via.

Com Sassá Mutema, em “O Salvador da Pátria” (1989), o golpe foi ainda mais duro. Um homem simples, ignorado, tosco até — transformado em herói político nacional. Símbolo de um país que sempre espera a salvação vindo do nada. Um Brasil que idolatra o homem comum desde que ele se mantenha manipulável. Lima, mais uma vez, entendeu antes de todo mundo: Sassá era o retrato da manipulação de massas em tempos de transição democrática. E o fez com dor. O fez como quem grita — mas não pode gritar.

Lima Duarte é o artista que nunca precisou de afetação. Em vez de brilho, ele escolheu verdade. Em vez de glamour, pegou a enxada. Falava com a boca de um lavrador, com a alma de um filósofo e com o corpo de um país inteiro. Seu olhar entendia o Brasil antes do Brasil entender a si mesmo.

“O bem-amado”, “Meu Pé de Laranja Lima”, “Carga Pesada”, “O Dono do Mundo”, “O Outro Lado do Paraíso”, “Passione”, “Pedra sobre Pedra”, “Belíssima”. E no cinema: “Abril Despedaçado”, “2 Filhos de Francisco”, “O Auto da Compadecida”. Em todos, ele não emprestou apenas seu rosto, mas sua biografia de país em construção. Porque Lima Duarte nunca interpretou personagens. Ele os criou com pedaços de brasileiros reais.

Faz 95 anos que Lima Duarte nasceu. E faz 95 anos que o Brasil, ainda sem saber, ganhou seu maior intérprete. Não se trata de memória afetiva. Trata-se de presença histórica. Trata-se de um artista que viveu todas as fases da televisão, que enfrentou ditaduras, que viu o teatro minguar e o streaming chegar. E, ainda assim, permaneceu. Pensando. Falando. Apontando.

Dizem que Lima escreve cartas todos os dias. Que lê Simone de Beauvoir, que chora, que se indigna. Que vê nos olhos da mãe, que já partiu, o olhar que ainda o conduz. Lima Duarte é, acima de tudo, um homem sensível. E por isso mesmo, um homem perigoso. Porque os sensíveis enxergam demais. Sentem demais. Não aceitam pouco.

Quando ele diz que cada personagem foi uma alma que habitou seu corpo, ele não está se exibindo. Está nos oferecendo um testamento. Um aviso. Uma permanência. Ele sabe que, quando partir, não irá sozinho. Levará consigo um Brasil que já não existe mais — e deixará aqui outro que talvez ainda nem tenha nascido.

Lima Duarte é o último dos nossos gigantes. E talvez o primeiro de um tempo que ainda virá. Que assim seja. Porque o Brasil ainda precisa dele. E sempre precisará.

Fabrício Correia é escritor, crítico de
cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.

 

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