Hoje é o Dia da Biblioteca. E há datas que devemos reverenciar. Porque são mais do que marcos no calendário: são raízes fincadas dentro da alma.
Venho de uma infância onde o barulho era regra e o silêncio, milagre. E foi nesse milagre que me refugiei, ainda menino, na biblioteca da escola onde estudava. Não sei quem me levou até lá pela primeira vez, talvez tenha sido a própria palavra, me puxando pela mão na hora do recreio. Lembro do cheiro: cera Tacolac, papel e eternidade. Lembro da luz entrando tímida, como se pedisse licença para iluminar. Lembro de mim mesmo, pequeno, franzino, quase invisível — abrindo um livro e, pela primeira vez, me sentindo visto.
Foi ali que descobri que as páginas têm coração. E que, ao virar cada uma, era como se o mundo me abraçasse devagar. Depois conheci o que, até hoje, considero um lugar sagrado: a Biblioteca Pública Cassiano Ricardo. A arquitetura parecia feita por mãos que conheciam o silêncio. Os livros, ali, não estavam apenas organizados. Estavam guardando o tempo. Ali, fui tomado por um amor profundo, quase litúrgico, pelas letras. Saí transformado. Não como quem lê um livro — mas como quem reza e é atendido.
Foi a partir dessas casas de encantamento que eu comecei a devolver ao mundo aquilo que um dia me salvou. Comecei a escrever. E, mais que isso, a semear livros.
Fundei salas de leitura onde havia ausências demais. Levei palavras para comunidades onde os sonhos eram miúdos. Transformei estantes gastas em trincheiras e bibliotecas em pequenos santuários de cidadania. E depois meus livros seguiram caminhos que nem eu imaginava. Hoje estão espalhados pelo Brasil. Estão na grandeza da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, projetada por Niemeyer — onde o concreto tem alma.
Tenho até um “entronizado” na Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça, onde Sérgio Paulo Rouanet, um dos nomes mais nobres da cultura brasileira, folheou meu livro com posfácio de Lygia Fagundes Telles, e naquele gesto silencioso, consagrou a minha escrita como quem acende uma vela diante de algo que respeita.
E porque a palavra também precisa se exibir, nasceu o Selfiebook — meu projeto de afeto onde leitores se mostram com livros. Fotografias que dizem: “eu leio, eu sinto, eu existo.”
Hoje, neste Dia da Biblioteca, não celebro estantes. Celebro sobrevivências. Celebro os espaços que me moldaram sem me pedir nada em troca. Celebro as bibliotecas que me acolheram menino e agora abrigam meus livros com a mesma ternura.
A biblioteca foi meu ventre e meu altar. Foi onde fui gerado como escritor. E se um dia a vida me apagar da superfície, sei que restarei ali: num canto de página, numa dedicatória esquecida, numa estante empoeirada onde um menino qualquer abrirá um livro meu e, sem saber por quê, sorrirá.
E então, mesmo sem nome, eu estarei vivo. Como sempre estive. Dentro da biblioteca. No coração da palavra.
Fabrício Correia é escritor, crítico de cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.