Cristina Buarque não foi feita para a moldura da indústria. Não cantava para ser lembrada: cantava para que outros não fossem esquecidos. Ao morrer neste domingo de Páscoa, 20 de abril de 2025, aos 74 anos, vítima de um câncer, Maria Cristina Buarque de Hollanda encerra sua passagem terrena como atravessadora de tempos — e não como personagem do tempo.
Ela pertence à linhagem de artistas que recusam o ornamento, que desconfiam do brilho fácil, que sabem que o canto mais duradouro é o que se faz devoto. Cristina jamais se valeu do sobrenome. Nasceu Buarque de Hollanda, sim, filha de Sérgio, irmã de Chico, Miúcha e Ana. Mas preferiu conquistar seu nome entre os bambas. E o fez com régua própria. Sem concessões, sem autopromoção, sem agenciamento de si mesma.
Sua trajetória não cabe em timelines. Cabe em rodas, em partituras riscadas à mão, em gravações de estúdio que ela tratava como resgate histórico. Cristina foi uma arqueóloga do samba. E uma restauradora de obras-primas que quase ninguém ouvia mais. Quem hoje canta Manacéa deve a ela. Quem ouve com reverência Cartola, Noel, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho — deve a ela também. Porque Cristina em seu canto devolvia vida àquilo que erroneamente havia sido deixado de lado.
Sua discografia é um manifesto. O disco Cristina (1974) é um divisor de águas. A gravação de “Quantas Lágrimas”, de Manacéa, é um ato de reparação. Prato e faca (1976) é, até hoje, um dos álbuns mais sérios e elegantes do samba pós-bossa nova. Não havia espetáculo em sua arte: havia liturgia. Cada escolha de repertório era um gesto político. Cada arranjo, um gesto de fidelidade.
Cristina rejeitava o estrelato. Preferia a coerência. Morava na Ilha de Paquetá, longe do barulho, onde comandava rodas como “a chefia” — não por imposição, mas por reconhecimento. Era ouvida por quem importava: os músicos, os estudiosos, os iniciados. Sabia mais sobre a história do samba do que qualquer tese acadêmica poderia reunir. E transmitia isso sem precisar ser didática. Era só cantar — e o Brasil se revelava.
E entre um disco e outro, entre um samba de roda e uma roda de conversa, estava sempre rodeada de gatos. Criaturas livres, sensíveis, silenciosas, como ela. Cristina encontrava nos felinos o que sempre buscou na música: verdade sem ruído, beleza sem ornamento, presença sem os histrionismos da fama. Os gatos eram sua extensão poética — independentes, mas afetuosos, como seu canto.
A Ilha de Paquetá era sua paisagem espiritual. Foi ali que ela fundou uma forma de viver o samba que contrariava tudo o que o mercado impõe. O canto em Paquetá era ancestral, político, feminino. Era resistência em estado puro. Quem passou por ali sabe: Cristina era a guardiã de um modo de existir que está desaparecendo.
Seus pares mais jovens, como Marisa Monte e Mônica Salmaso, bebem dessa fonte com reverência. Porque Cristina ensinou, com o próprio ofício, que o canto verdadeiro é o que se curva à canção, não o que tenta dominá-la. Sua voz era justa. E por isso permanece.
Cristina não se deixa substituir. Porque ela representa o avesso da lógica contemporânea: onde todos correm para aparecer, ela caminhava para preservar. Onde o mercado exige novidade, sempre ofereceu permanência. Sua morte é a perda de uma consciência, de uma presença civilizatória na música brasileira.
É raro encontrar alguém tão avessa ao ruído quanto atenta ao essencial. Cristina Buarque não viveu para ser celebrada, mas a celebração ao seu legado é obrigatória. Porque ouvir Cristina cantar é reaprender o valor da dignidade artística. Ela fez da canção uma forma de fidelidade. E, por isso, ao partir, nos deixa órfãos de sua integridade. Mas nos deixa também armados com o seu exemplo.
Num Brasil que esquece fácil, Cristina foi memória viva. Agora é patrimônio. E, em algum lugar onde os sambas ainda são sussurrados e os gatos dormem sobre partituras antigas, ela segue, sorrindo com um cigarro na mão, como quem sabe que viveu certa.
Fabrício Correia é escritor, crítico de cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. Especialista em Musicoterapia e Vibroacústica. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.