Poucos artistas hoje se atrevem a pensar a canção como um espaço de fratura ontológica. A maioria compõe para preencher o silêncio. Raul Signorini, sob o nome Metamorfase, compõe para confrontá-lo. Seu EP “O Romance e o Cadafalso” é uma espécie de ensaio existencial com guitarras, onde cada faixa é uma variação sobre o absurdo, a incomunicabilidade e o fracasso inevitável do desejo humano de plenitude.
Ao longo de três canções — “Um Gosto Amargo”, “Quando o Amor Não Diz Nada” e “Energia Escura” — somos arrastados por uma espiral de confrontos. Trata-se de um pequeno ciclo lírico-filosófico que, como os romances de Kafka e os ensaios de Sartre, não busca redenção, mas lucidez.
I. O eu cindido: linguagem e carne
Na abertura, “Um Gosto Amargo”, já temos o pacto proposto: A linguagem não está a serviço do ornamento, mas da denúncia. Não se trata de mágoa performática, mas da exposição crua da irredutibilidade entre o eu e o outro. Raul escreve para acusar o indizível, para “versar as cartas interceptadas”, como ele próprio canta. Trata-se de um homem que tenta organizar o caos com palavras, sabendo que falhará — mas ainda assim insiste. É, nesse sentido, um herdeiro existencialista: a ética está no ato de tentar mesmo diante do fracasso certo.
A canção é marcada por um arranjo cortante: as guitarras ferem. A métrica verbal é truncada, quase torturada. Como se cada verso fosse extraído a fórceps. A canção inteira soa como uma tentativa de manter-se são no meio do colapso de significados.
II. A incomunicabilidade amorosa como ruína do ser
Em “Quando o Amor Não Diz Nada”, o ponto de ruptura se aprofunda. Aqui, não há mais acusação, mas silêncio mineral. A letra toca num dos dilemas centrais da filosofia da linguagem: é possível compreender o outro quando a gramática da experiência é irreconciliável?
O amor, nesta canção, é uma ruína que persiste — não como presença, mas como resto sem função. “Presos nos escombros do sentimento”, Raul canta, ecoando as palavras de Sartre em “O Ser e o Nada”: o outro é ao mesmo tempo minha necessidade e minha condenação. Esta canção é o diário íntimo de quem vive aprisionado na tentativa de comunicação falida.
Musicalmente, há uma contenção deliberada — como se o arranjo temesse preencher demais. Cada acorde é deixado para morrer lentamente no ar. O silêncio, aqui, é mais expressivo do que qualquer riff: o vazio é o protagonista.
III. A energia escura e o colapso da matéria afetiva
Na terceira e última faixa, “Energia Escura”, Raul abandona o território da relação e mergulha no abismo cósmico de si.
“A quantos anos-luz você estava de mim?”
Este não é mais o sujeito magoado, nem o amante abandonado — é o condenado metafísico. Ao recorrer à imagem astronômica, Raul alude ao conceito da física contemporânea que batiza a canção: a energia escura é aquela que não se vê, mas move o universo. Analogamente, a dor que “fez morada em ti e agora explode em mim” é esse resíduo afetivo invisível, mas potente, que move os gestos, as ausências, os silêncios do sujeito.
É a faixa mais agressiva, quase ritualística, onde o vocal se torna incantatório, como uma evocação. A guitarra parece afogar-se num loop espectral. A canção não busca resolver nada — ela apenas constata: não há saída.
IV. O cadafalso não é castigo: é destino
O título do EP é uma chave semântica decisiva. “O Romance e o Cadafalso” não propõe uma dualidade. Propõe uma identidade: o romance é o cadafalso. O amor, neste disco, não é uma promessa, mas uma armadilha. Amar é caminhar em direção ao enforcamento com os olhos abertos. É ir com plena consciência da tragédia — e ainda assim ir. É aí que se revela a ética do artista.
Como leitor de Kafka, Raul compreende a lógica da culpa sem causa. Como leitor de Sartre, sabe que a liberdade é uma condenação. Como criador, constrói um disco que não quer nos salvar, mas nos entregar uma lucidez árida, inquieta, porém redentora em sua coragem de não mentir.
Porque, como dizia Camus, outro pensador dessa linhagem: “No meio do inverno, aprendi finalmente que havia em mim um verão invencível.”
E esse verão, talvez, comece com um gosto amargo.
Fabrício Correia é crítico de cinema, música e literatura. Especializado em Musicoterapia e Vibroacustica pela UNISE-PR.