Uma vaquinha de mais de meio milhão de reais para um herói improvável, um voluntário indonésio que arriscou a própria vida no resgate de uma brasileira. Um país inteiro mobilizado por gratidão. Doações feitas com o que há de mais puro: o impulso de retribuir um gesto desinteressado. Mas, em silêncio, 20% do valor foi retido pela plataforma Voaa, ligada ao perfil Razões Para Acreditar — o que representa, neste caso, mais de R$ 100 mil. O fato expôs algo que até então era disfarçado sob uma estética de bem comum: o quanto se lucra com a empatia alheia.
O problema não está em cobrar. Nenhuma estrutura digital, equipe editorial, nenhum sistema de pagamento funciona gratuitamente. O que está em jogo é o modo como se comunica isso. Há uma diferença abissal entre apresentar-se como empresa que intermedeia campanhas de arrecadação e vestir a roupagem de entidade moral, que convida o público a “acreditar” em algo maior. Quando a linguagem é toda voltada ao afeto, à urgência, ao gesto solidário, não é justo — nem ético — omitir, esconder ou diluir a informação de que parte significativa daquele dinheiro não chegará ao destino esperado.
O que incomoda não é o valor. É o silêncio.
Aqueles que contribuíram não foram clientes em busca de um serviço. Foram cidadãos tentando reparar uma dívida moral. Doaram movidos por impulso, por comoção, por identificação. E quando a estrutura que capta esse impulso se alimenta dele sem mostrar a conta com transparência, o que se rompe não é o vínculo entre plataforma e doador — é o pacto simbólico entre verdade e solidariedade. Ninguém doou para uma empresa. Doaram para Agam. A empresa apenas atravessou o caminho, e por isso, deveria ter se feito visível e honesta, não silenciosa e confiante de que as letras miúdas bastariam.
Porque não bastam.
A lógica da intermediação solidária exige um cuidado ético maior do que qualquer outro negócio. Estamos lidando com fé pública. Com dores reais. Com esperanças frágeis. É exatamente por isso que o discurso empresarial — “somos um negócio social” — não pode ser usado como escudo para práticas que, se fossem ditas com todas as letras, talvez não fossem aceitas por boa parte dos doadores. Um negócio social só é social se age de forma íntegra, e isso começa pela transparência — não apenas jurídica, mas simbólica, emocional, moral.
É preciso dizer, com todas as palavras, qual é o custo da intermediação. É preciso que o doador saiba, no momento do gesto, o que está sendo feito com o dinheiro dele. Não depois. Não em comunicados de crise. Não por pressão da opinião pública. Mas antes — com respeito, com clareza, com a humildade de quem reconhece que o sentimento que movimenta essas campanhas não é um produto: é um bem coletivo. E nenhum bem coletivo pode ser tratado como ativo de conversão.
O que está sendo pedido aqui não é a falência das plataformas. É o fim da ambiguidade. O direito de saber. A restituição do gesto solidário ao seu lugar de origem: a escolha consciente de ajudar. E ajudar só é escolha quando está acompanhada de informação plena.
A Voaa e o Razões Para Acreditar não são apenas veículos de arrecadação. São construtores de narrativa. Arquitetam a emoção, selecionam as histórias, modulam o tom da compaixão. São, portanto, também responsáveis pelas consequências dessa curadoria. Quando se constrói uma marca sobre o convite à fé no outro, é preciso prestar contas com mais do que números: com coerência.
A cobrança de 20% não é, por si só, injustificável. Mas o modo como ela foi silenciada diz mais do que os próprios contratos. Diz que há uma confiança implícita sendo explorada. E isso é mais grave do que qualquer margem.
Agam pediu apenas orações. Recebeu meio milhão de reais. E sem saber, foi transformado em vitrine de um modelo que precisa urgentemente ser discutido. Não para destruí-lo. Mas para que ele não destrua o próprio sentimento que o justifica: a generosidade sem interesses.
Porque se até a generosidade começa a parecer negócio, então talvez o problema não seja a plataforma. Talvez o problema sejamos nós. E aí, quando olharmos para o próximo pedido de ajuda, a dúvida terá plantado sua semente. Não porque faltam histórias comoventes, mas porque sobraram intermediações que não souberam nos dizer, com clareza, para onde o dinheiro foi. Nesse momento, a empatia vacila. E quando a empatia vacila, tudo o que nos resta é o cinismo.
Razões para acreditar, afinal, precisam ser dadas. Não compradas.