“Conduzindo Miss Daisy” é, antes de tudo, uma escuta — da memória, da ternura, da ignorância persistente. Dirigido por Bruce Beresford a partir do texto de Alfred Uhry, o filme não é um panfleto, tampouco um manifesto; é um gesto delicado de aproximação entre almas que o tempo, o orgulho e a história insistiram em manter separadas.
A obra percorre um arco de vinte e cinco anos, mas não há aqui nenhuma pressa. O que se constrói é mais lento que o tempo: é a formação de um vínculo afetivo. Miss Daisy (Jessica Tandy, em estado de contenção fenomenal), viúva judia de Atlanta, representa uma América que, mesmo minoritária, se enxerga como superior — um tipo de supremacia que se manifesta não na brutalidade, mas na recusa em admitir a própria cegueira moral. Hoke (Morgan Freeman, monumental), o motorista negro contratado por seu filho, representa outra América: a que foi arrastada pelas engrenagens do século XX com os pés no século XIX.
É justamente no atrito entre essas duas figuras que o filme encontra sua tensão silenciosa. O roteiro, de precisão quase minimalista, resiste ao impulso melodramático e trabalha com a matéria do cotidiano: pequenas recusas, gestos contidos, uma recíproca vigilância que lentamente se transmuta em familiaridade.
“Conduzindo Miss Daisy” não propõe uma superação do racismo. Ao contrário, expõe sua banalidade. Não há vilões evidentes: há pessoas comuns, educadas, civilizadas, e por isso mesmo mais perigosamente impregnadas por uma lógica de exclusão. O racismo que o filme denuncia é o da polidez, do silêncio constrangido, do paternalismo camuflado em gentileza.
O brilhantismo de Freeman está em nunca permitir que Hoke se reduza à função narrativa de um “mentor sábio” ou de um contraponto moral. Ele não é mero coadjuvante da jornada de redenção de Daisy. É ele quem a conduz — não apenas fisicamente, mas humanamente, espiritualmente. A metáfora do carro, que poderia soar óbvia, é aqui uma linha tênue entre a independência ilusória e a necessidade real. Daisy, que teme ser vista como inválida, descobre-se dependente não de um motorista, mas de um olhar que a veja por inteiro.
Jessica Tandy, por sua vez, compõe uma Daisy quase bíblica: altiva, rígida, mas não impermeável. Quando, já idosa, olha para Hoke e diz, com a voz embargada, “Você é meu melhor amigo”, o momento não é triunfal, mas trágico. É o reconhecimento tardio de uma humanidade que sempre esteve ali, e que ela, por orgulho, convenção ou cegueira cultural, se recusou a nomear.
A direção de Beresford, muitas vezes injustamente subestimada, é de uma elegância comedida. O filme não exibe virtuosismo técnico, e talvez por isso mesmo sobreviva ao tempo. Tudo está a serviço da narrativa e da relação entre os dois protagonistas. A trilha sonora de Hans Zimmer, ainda jovem à época, alterna entre a melodia doce e a pontuação melancólica, sugerindo que a estrada entre Daisy e Hoke nunca será plenamente concluída.
“Conduzindo Miss Daisy” venceu o Oscar de Melhor Filme em 1990, o que à época causou desconforto entre críticos que viam em “Faça a Coisa Certa”, de Spike Lee, um retrato mais urgente do racismo contemporâneo. Mas seria injusto opor as obras. Se Lee grita — como deve gritar —, Beresford sussurra. E há denúncias que só o sussurro pode conter. Ambas as vozes são indispensáveis.
O maior mérito de “Conduzindo Miss Daisy” talvez seja sua recusa à catarse. Não há redenção plena. Há um homem negro que viveu à margem, e uma mulher branca que se permitiu tarde demais compreender isso. É um filme sobre as amizades que nascem na fresta, sobre o que pode — e o que não pode — ser curado pelo tempo.
Em tempos de discursos estridentes e polarizações mecânicas, a obra permanece como um lembrete: há conflitos que se decidem na sala de estar, no banco do carona, no oferecimento de uma torta. E há cicatrizes que nem mesmo a convivência mais longa pode dissolver.
“Conduzindo Miss Daisy” é, enfim, um filme de silêncio. Um silêncio cheio de implicações, de memórias apagadas, de afetos interditados. É o retrato de uma América que, embora refinada na superfície, precisa ser conduzida — não porque seja fraca, mas porque ainda não sabe para onde ir.