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Crítica: “Mary and Max”: cartas de um mundo que não se encaixa

“Mary and Max” poderia ter sido apenas uma história sobre uma amizade improvável. Mas Adam Elliot faz dela um mapa afetivo dos invisíveis. A animação em stop-motion, de aparência frágil e espírito indestrutível, nos coloca diante de duas existências que escapam aos moldes normativos — e justamente por isso revelam com clareza brutal aquilo que o mundo escolhe ignorar: o sofrimento que não cabe na linguagem higienizada da felicidade contemporânea.

Mary, uma menina australiana nascida no descuido, cresce num lar onde afeto e atenção são ruínas. A mãe rouba bebidas no supermercado. O pai empalha aves de forma obsessiva. O mundo à sua volta é cinzento, mas sua imaginação insiste em enviar cartas. No gesto de escolher um nome aleatório na lista telefônica e escrever a Max, há menos inocência infantil do que urgência existencial. Ela escreve porque não suporta mais ser esquecida.

Max, o destinatário, tem 44 anos. Vive no centro da cidade mais movimentada do planeta, mas seu cotidiano é feito de repetições rigorosas. Diagnosticado com síndrome de Asperger, ele organiza seus pensamentos em listas, memoriza estatísticas absurdas e sofre surtos de ansiedade quando algo escapa do controle. Sua relação com o mundo é mediada pelo medo e pelo cansaço. O vínculo com Mary não nasce do acaso, mas do reconhecimento mútuo: ambos foram deixados de lado pelo funcionamento social.

O filme, narrado com secura proposital, evita a estetização da dor. Cada imagem, cada objeto em cena, cada mancha, remete a uma falha de acolhimento. A sociedade aparece como um organismo que exige desempenho, coerência e normatividade — e pune quem não entrega isso. Mary sofre bullying por ter uma mancha no rosto. Max é ridicularizado por sua aparência e por sua lógica emocional distinta. Nenhum deles tenta ser aceito. Eles escrevem cartas porque escrever, ali, é resistir.

A arquitetura da cidade — tanto em Melbourne quanto em Nova York — reforça essa ideia de compressão. As casas são pequenas. As ruas são silenciosas. A ausência de cor sugere mais do que melancolia: ela explicita a neutralização forçada de qualquer exuberância individual. Ao contrário de outras animações que apostam no mundo colorido como salvação, “Mary and Max” nos conduz por corredores desbotados onde só o que é insistente sobrevive. E as cartas resistem. As cartas atravessam.

Ao longo do filme, não há grandes rupturas narrativas. O tempo passa, mas não como redenção. Mary cresce, Max envelhece, o mundo não muda. Mas a troca entre eles aprofunda-se. As cartas se tornam menos expositivas, mais íntimas. A linguagem se torna um lugar onde o desvio é possível — e, mais do que isso, aceito. A amizade aqui não cura. Apenas acolhe o que o diagnóstico, a religião e o mercado não souberam nomear.

A voz de Philip Seymour Hoffman, seca, precisa e exausta, entrega um Max de dimensões psíquicas raramente vistas no cinema. Não há caricatura, nem superação. O personagem permanece autista do início ao fim, mas aprende a existir na presença da diferença. Toni Collette acompanha essa contenção com uma Mary adulta que carrega todas as marcas da infância — e as transforma em gesto.

Do ponto de vista psicanalítico, “Mary and Max” propõe uma ética da escuta radical. A escuta que não interpreta. Que não tenta adaptar o outro à linguagem do eu. Max não tenta entender Mary como alguém “normal”. Mary, por sua vez, não exige de Max o vocabulário da emoção espontânea. Ambos se escrevem. E nessa correspondência, há um pacto silencioso: você pode ser como é, mesmo que eu nunca entenda totalmente.

Em tempos de medicalização afetiva e pedagogia da empatia performática, o filme oferece um contraponto rigoroso. A amizade ali construída não é pedagógica, nem terapêutica. É densa, imperfeita, atravessada por mal-entendidos e silêncios longos. E, mesmo assim, é a única forma de afeto que os dois reconhecem como legítima.

No plano final, quando Mary descobre que suas cartas foram coladas no teto do apartamento de Max, o filme não busca comoção. O que se vê ali é outro tipo de gesto: a fixação física da presença do outro.

“Mary and Max” não pretende emocionar. Pretende sobreviver. E o faz com uma dignidade que raramente se vê em qualquer gênero cinematográfico — quanto mais em uma animação.

É, no fundo, um filme sobre a única forma de amor que resiste ao tempo, ao silêncio e à falha: aquele que continua.

 

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