Foto:Arquivo pessoal

“MM”: a estreia de Marisa Monte

Em janeiro de 1989, quando as lojas de discos ainda eram templos e o vinil reinava, um álbum pegou todo mundo de surpresa. “MM”, estreia de Marisa Monte, não tinha nada da cartilha das gravadoras para novos talentos, foi gravado fora do estúdio esterilizado,  ao vivo, em um só fôlego no Teatro Villa-Lobos, com câmera de Walter Salles, produção de Nelson Motta e um público respirando junto; epifania total. A ousadia era tanta que parecia coisa de veterana e não de uma cantora de 21 anos que até pouco tempo atrás fazia barulho só em rodas menores e programas de TV.

O disco é um caldeirão. Marisa começa com “Comida”, dos Titãs, e dali em diante abre a mesa: samba de Candeia, baião de Luiz Gonzaga virado reggae, soul de Tim Maia com pitadas de provocação (“legalize marijuana” dito no gogó), Mutantes na veia, Carmen Miranda revivida em “South American Way”, Gershwin com Nouvelle Cuisine, Marvin Gaye. A mistura poderia ser um desastre. Mas em vez de soar como colagem, ganhou coerência no timbre límpido e no jeito de interpretar que já era só dela. A escolha das músicas longe de um desfile de referências, tornou-se uma espécie de cartão de visitas: “eu sou isso tudo e ainda vou ser mais”.

O hit imediato foi “Bem Que Se Quis”, versão de Nelson Motta para uma canção do italiano Pino Daniele. Tocava em todas as rádios, grudava na cabeça, entrou em novela da Globo. Mas o barato do disco não estava só no sucesso fácil, habitava na convicção com que Marisa atravessava gêneros, como se dissesse: a MPB pode conversar com o soul, com o rock, com o jazz, e nada disso diminui sua força. Pelo contrário. O público embarcou de imediato. Mais de 700 mil cópias vendidas num país em crise não é pouca coisa para um primeiro disco, ainda mais nessas condições.

A crítica também se rendeu. Alguns espantados pelo risco, afinal, um debut ao vivo era quase suicídio comercial. Outros, impressionados pela sofisticação de quem parecia ter já uma carreira inteira às costas. O tempo confirmou: “MM” foi um marco. Em 2007, a Rolling Stone Brasil o colocou entre os 100 maiores discos da nossa música. Em 2022, uma enquete com especialistas organizada por O Globo reafirmou o lugar dele entre os mais importantes das últimas quatro décadas.

Ouvir “MM” hoje é voltar àquela noite no Teatro Villa-Lobos e perceber que não era uma menina testando repertório. Era uma artista pronta, que escolheu a vitrine mais arriscada e saiu vitoriosa. De lá para cá, ela se tornou referência de sofisticação e rigor artístico, mas tudo isso já estava ali, naquele susto de 44 minutos. Um disco de estreia que, ao invés de pedir licença, simplesmente entrou e ocupou espaço.

Fabrício Correia é escritor, jornalista e professor universitário com especialização em Musicoterapia e Vibroacústica. Apresentou o programa “Canções Essenciais” na afiliada da Rádio Bandeirantes AM, “Cidade AM 1120”.

 

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