Estreia: “A Mulher da Casa Abandonada”, Prime Video

Kátia Lund foi uma das arquitetas de “Cidade de Deus”. Estava ali, no set, nas vielas, no olhar dos meninos que transformaram sua vida em ficção brutal. Foi co-diretora, construiu o verismo das cenas, decifrou códigos da periferia carioca que nenhuma lente estrangeira poderia captar. E, no entanto, a história oficial preferiu Fernando Meirelles como gênio solitário, herdeiro da glória. Ele virou nome de Oscar, viagens a Hollywood, entrevistas em Cannes. Ela virou rodapé. É o destino cruel de tantas mulheres no cinema: são lembradas como colaboradoras, nunca como criadoras.

Esse apagamento é denúncia. Quando se retira de uma mulher o crédito da obra, o que se reforça é a velha fábula patriarcal: homens são gênios, mulheres são auxiliares. Meirelles é celebrado, Kátia silenciada. O país que aplaudiu o filme esqueceu que havia, naquela explosão estética, a mão de uma diretora que sabia traduzir dor em imagem.

Anos depois, ela retorna, com audiência no streaming, e o título de sua nova empreitada parece uma ironia amarga: “A Mulher da Casa Abandonada”. Não é apenas a história de Margarida Bonetti, a brasileira que fugiu da Justiça norte-americana e se refugiou em uma mansão decadente em Higienópolis. É também, em certa medida, uma metáfora da própria Kátia: uma mulher que a indústria cinematográfica internacional quis abandonar, mas que resistiu ao esquecimento.

O podcast de Chico Felitti já havia feito estrondo. Jornalismo narrativo, ritmo de thriller, uma voz em busca de uma personagem que parecia fantasma. O que o áudio oferecia era mistério, ambientação, o gosto amargo de um escândalo que se escondia a céu aberto. Mas faltava corpo, rosto, a presença física da vítima, Hilda Rosa dos Santos. A série dirigida por Kátia, agora no Prime Video, oferece justamente isso: o corpo da verdade. A palavra filmada da vítima, que finalmente fala.

Entre o podcast e a série há uma diferença essencial: no primeiro, Margarida é espectro, um enigma quase folclórico. Na segunda, ela é símbolo do Brasil que normaliza a servidão doméstica, que se recusa a encarar seu racismo estrutural. Felitti nos deu a ruína como mistério; Kátia nos dá a ruína como denúncia.

E é aí que o talento de Kátia aparece em plena forma. Sua câmera não se limita a ilustrar o áudio. Ela sabe que imagem é poder. A lente insiste nos detalhes da casa, na máscara branca de Margarida, nos silêncios constrangedores, mas sobretudo na dignidade da vítima. Ao dar rosto a Hilda, restitui humanidade àquela que foi reduzida a estatística e devolve força a todas as mulheres anônimas que ainda vivem sob grilhões invisíveis.

Há um eco incômodo: a mulher abandonada da série e a mulher que o cinema tentou abandonar. Duas histórias que se cruzam e se iluminam. Uma fugiu da Justiça e se escondeu em uma mansão; a outra foi encoberta pelo machismo estrutural da indústria cultural. Uma se tornou símbolo da impunidade; a outra, símbolo da resistência.

O ensaio social que emerge dessa obra é profundo. O caso Margarida não é isolado: após o sucesso do podcast, denúncias de trabalho análogo à escravidão doméstica aumentaram em mais de 60%. O Brasil descobriu que a casa abandonada é, na verdade, uma vizinhança inteira. Somos um país que normalizou a exploração, que ainda permite que mulheres pobres, na maioria dos casos negras vivam como sombras, invisíveis, sem salário, sem descanso, sem voz.

Kátia Lund, ao escolher essa história, parece também exigir: olhem para o que tentam esconder. Não apenas para Margarida, mas para todas. Seu gesto é político, reparação histórica. Não é só reconstruir uma narrativa jornalística, mas devolver densidade a uma experiência coletiva de abandono.

O resultado é uma série curta, três episódios, menos de duas horas no total, mas devastadora. Porque ali não está apenas a mulher da casa. Está a mulher do cinema, a mulher que foi escravizada, a mulher do Brasil. Está o espelho que não queremos encarar.

“Cidade de Deus” mostrou a violência que nos define. “A Mulher da Casa Abandonada” mostra a hipocrisia que nos sustenta. Entre um e outro, a trajetória de Kátia Lund é o fio invisível que costura um país que insiste em esquecer suas mulheres.

Fabrício Correia é crítico de cinema, escritor e jornalista. Integra a Academia Brasileira de Cinema e a União Brasileira de Escritores.

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