Hermeto Pascoal partiu neste sábado, aos 89 anos, deixando para trás não apenas uma obra monumental, mas também episódios que desafiaram a lógica, o poder e a própria compreensão do que chamamos música. Entre eles, há um que se tornou mito e símbolo de sua ousadia: o dia em que tentou reger um coral e porcos em pleno Festival Internacional da Canção, em 1972, acompanhado da voz seminal de Alaíde Costa.
A ditadura, que perseguia ideias, palavras e até acordes, não suportou a provocação. A apresentação foi proibida. Dois porcos, conduzidos ao palco como se fossem músicos de uma orquestra maior, foram vistos pelo regime como afronta. O gesto, porém, tinha muito mais de filosofia do que de escândalo. Hermeto não pretendia humilhar o festival, tampouco debochar do público. Queria mostrar, de forma extrema, que tudo o que respira pode soar, que a música não é um código fechado em partituras, mas uma força universal que atravessa a vida.
Naquele instante histórico, a censura revelou sua fragilidade: se o grunhido de animais podia ser lido como ameaça, era porque o regime temia até mesmo o que não compreendia. Hermeto, com seu humor libertário, lembrava que a arte nasce justamente do inesperado, do incômodo, daquilo que não se encaixa. A imagem do maestro alagoano conduzindo porcos como coralistas ficou gravada na memória como uma metáfora do absurdo de um país onde até os sons precisavam de autorização oficial.
Essa cena, tão improvável, resume o espírito do “bruxo dos sons”. Ao transformar o banal em sublime, Hermeto desafiava tanto a técnica quanto o poder. Agora, ao nos despedirmos de Hermeto, histórias como essa ecoam com ainda mais força. Ele foi um alquimista sonoro, filósofo do improviso, alguém que nos ensinou a escutar o mundo como ele é: diverso, ruidoso, imprevisível e, justamente por isso, belo. Hoje, sua partida nos convoca a ouvir de novo aquilo que ele sempre soube revelar: que a verdadeira música é indestrutível, porque pulsa em tudo o que existe.
Fabrício Correia é escritor, jornalista e professor universitário. Especialista em Musicoterapia e Vibroacústica, é membro da União Brasileira de Escritores.