B.B. King faria cem anos em setembro. Cem. Um século inteiro desde que Riley Ben King nasceu em Indianola, no coração do Mississipi, cercado de algodão e silêncio. Cresceu pobre, filho da segregação, e descobriu cedo que a música podia ser não apenas sustento, mas também salvação. Levava o violão para as esquinas, aprendia na igreja, e ali o blues deixou de ser gênero para virar destino.
Décadas depois, o mundo o conhecia por outro nome: B.B. King, “Blues Boy King”. E por uma companheira inseparável: Lucille. A história virou lenda, em 1949, ele tocava num clube em Arkansas quando dois homens começaram a brigar por causa de uma mulher chamada Lucille. O fogo das lamparinas derrubadas incendiou o salão. Todos correram, B.B. também. Mas, no meio da rua, percebeu que deixara a guitarra para trás. Voltou, atravessou as chamas e resgatou o instrumento. Sobreviveu por milagre. Batizou a guitarra de Lucille, não pela mulher da briga, mas para lembrar-se sempre de nunca arriscar a vida por algo tão fútil. A partir dali, cada guitarra que segurou recebeu o mesmo nome e ganhou voz.
Eu o vi em 2012, no Bourbon, em São Paulo. B.B. entrou devagar, apoiado, cercado de músicos que o reverenciavam. Sentou-se, encostou Lucille no colo e, com o primeiro acorde, fez o tempo parar. Não havia pressa. Cada nota se alongava como um suspiro. Não foi show: era confissão. E nós, plateia, éramos cúmplices de um homem que transformava cicatrizes em música.
Em 2023, reencontrei B.B. de outro modo. Meu amigo André Sturm trouxe para o MIS – Museu da Imagem e do Som, uma exposição com suas relíquias. Ali estavam ternos impecáveis, fotografias, guitarras, pedaços de uma vida que se confundiu com a história da luta pelos direitos civis. Porque B.B. King não foi apenas rei do blues; foi também testemunha de uma América partida ao meio, em que a música de um homem negro do sul ecoava como resistência. Caminhar por aquela mostra foi como atravessar um corredor de sons: cada objeto parecia pulsar como um acorde de Lucille.
Agora, no centenário, penso que tudo já aconteceu e continuará acontecendo. B.B. King ainda está aqui. Presente no vinil que range, no bar em que um jovem tenta imitar seu vibrato, no silêncio que precede a primeira nota de um blues bem tocado.
Cem anos depois, o que transborda é presença. Porque B.B. King não foi apenas o homem que tocava guitarra. Foi o homem que a fez falar com todos nós.
Fabrício Correia é historiador, escritor, jornalista e produtor cultural. Professor universitário, é especialista em Musicoterapia e Vibroacústica pela UNISE-PR.