Sam Peckinpah nasceu em 1925, em Fresno, e trouxe consigo o faroeste tatuado na infância como quem carrega um destino que não pediu. Cresceu entre fazendeiros, armas e desertos, e o que aprendeu, desde cedo, é que o tempo apaga tudo, até o heroísmo. Quando começou a filmar, já parecia velho, como se o cinema fosse para ele uma forma de lembrar que o passado não volta, mas insiste em morrer lentamente. Nenhum diretor olhou o Ocidente americano com tamanha lucidez. Nenhum transformou a poeira em desespero com tanta poesia. Nenhum acreditou, até o fim, que o homem ainda podia morrer de pé mesmo quando o mundo inteiro já se ajoelhava diante da mentira.
Em “Quando os Bravos se Encontram”, o primeiro grande acerto, ele colocou dois pistoleiros no ocaso da vida atravessando montanhas para entregar uma carga de ouro. Não era apenas a história de um trabalho derradeiro, mas o retrato de uma era que terminava. O personagem que insiste em cumprir o dever mesmo sabendo que ninguém mais acredita nele é a imagem de Peckinpah diante de Hollywood. Enquanto o cinema americano buscava redenções fáceis, ele preferia as derrotas dignas. O que o movia não era o triunfo, mas a persistência moral diante do colapso.
A consagração veio com “Meu Ódio Será Tua Herança”, filme que permanece como um monumento à ferocidade e à beleza. Em 1913, um grupo de foras da lei tenta sobreviver no México, mas o que se desenha na tela é o esgotamento de toda uma mitologia. As cenas de tiroteio, filmadas com uma câmara que parece respirar, são coreografias do fim. Cada explosão é uma confissão. O sangue, a poeira, os corpos arrastados pela terra compõem uma elegia para o Oeste que morre. A arte de Peckinpah é a de quem sabe que o mundo acabou e mesmo assim continua filmando.
O tempo seguinte foi de exílio e exasperação. Em “Sob o Domínio do Medo”, ele transferiu a violência para dentro de casa, como se o lar civilizado fosse uma armadilha prestes a ruir. O matemático que perde o controle diante da barbárie revela o mesmo instinto de sobrevivência dos pistoleiros envelhecidos. A violência é apenas outra forma de linguagem, um último recurso do homem quando as palavras falham. Mais tarde, em “Tragam-me a Cabeça de Alfredo García”, Peckinpah levou esse desespero ao limite. O protagonista viaja com uma cabeça decepada no banco do carro e conversa com ela enquanto tudo apodrece ao redor. A jornada não é de redenção, é de decomposição. O grotesco se torna humanidade, a podridão ganha um tom de confissão.
Em “Pat Garrett e Billy the Kid”, o mito é abatido em pleno rosto. O xerife que mata o velho companheiro sabe que está matando a si mesmo. É um filme de poeira e cansaço, feito de olhares que não pedem perdão. Bob Dylan canta, e a canção funciona como um lamento do próprio cinema. O faroeste, ali, chega ao seu último respiro.
Peckinpah não acreditava na violência como espetáculo. Filmava-a como um espelho turvo da moral. Não buscava catarse, mas compreensão. Em seus filmes, os tiroteios são cerimônias de expiação. A câmara lenta não existe para enfeitar, mas para prolongar o instante em que o homem enfrenta sua própria ruína. O que move seus personagens é a fidelidade a códigos ultrapassados, a crença ingênua na amizade, a tentativa desesperada de permanecer íntegro num mundo que já não exige integridade.
Nos bastidores, ele era um homem em combustão. Bebia, gritava, insultava, implorava por mais um dia de filmagem, como se cada obra fosse a última chance de existir. Essa inquietação impregna cada plano. Quando filmava um rosto, parecia buscar a alma por trás da máscara. Quando filmava uma morte, registrava o desaparecimento de um tempo inteiro. Seu cinema é o território onde a nostalgia luta com o niilismo, e o resultado é uma beleza cansada, feita de suor e poeira.
Os personagens de Peckinpah longe de serem heróis, são sobreviventes de uma moral extinta. Carregam no olhar a dignidade dos que perderam tudo, mas continuam. É esse continuar que o fascina. A grandeza, em seu universo, não está no ato, mas na insistência. O homem que atira até o último cartucho sabe que não há vitória possível, e mesmo assim não se entrega. Esse gesto, filmado com a precisão de um réquiem, contém o sentido de toda a sua obra.
Um século depois de seu nascimento, o nome de Sam Peckinpah ainda arde como ferida. Ele filmou o fim do sonho americano sem precisar denunciá-lo, bastou mostrá-lo esvaziado, desidratado, reduzido à poeira que cobre as botas dos seus personagens. Seu cinema é um testamento da desesperança e, ao mesmo tempo, da teimosia humana diante da morte.
Quando nosso século se curva diante da pressa e da assepsia, é nele que o cinema reencontra o peso da alma. Sam Peckinpah pertence àquela estirpe de artistas que não pedem perdão nem licença. Filmou o fim e, com ele, salvou o que ainda restava de verdadeiro.
Fabrício Correia é crítico de cinema, escritor, historiador e professor universitário. Foi diretor do Sindicato Nacional da Indústria Audiovisual e integra a Academia Brasileira de Cinema.



