Nunca confie num texto que não tenha suado para nascer. Palavras, quando não sonhadas, vividas ou doídas, são só amontoados de letras. Sequência inerte de frases que passam por nós como um vento que não muda o ar. E o que faz um texto ter sangue? Não é a gramática, nem a coesão, nem o argumento lógico. É a consciência que o escreve. É a vida que o sustenta por dentro. Todo texto verdadeiro tem um corpo: pulsa, hesita, respira, e às vezes falha. Mas falha com beleza. Porque é humano.
As inteligências artificiais produzem textos limpos, redondos, obedientes. É justamente aí que mora o engano. Porque a escrita não é para obedecer — é para questionar. O bom texto não vem pronto: ele se abre em espinhos. Nos incomoda, deixa resíduo. E nenhum algoritmo sabe o que é isso. Porque a IA não escreve. Ela repete. Organiza o que foi dito, mas não arrisca o que ainda não foi dito. E a escrita, para ser digna do nome, precisa ser risco. Precisa ser travessia, embriaguez, abismo, e só depois — muito depois — talvez, forma.
Lembro do que senti quando li “A paixão segundo G.H.” pela primeira vez. A palavra ali não era meio, era fim em si mesma. Uma coisa viva, indomada, que me feria enquanto dizia. Clarice não escreveu para explicar o mundo. Escreveu porque havia algo entre ela e o mundo que não podia ser calado. E isso a máquina jamais fará. Porque ela não sofre. Não espera. Não se arruína. Uma máquina não treme diante de um silêncio. Um escritor treme.
Quem já leu Guimarães Rosa sabe que ali jamais habitaria um algoritmo. Aquilo é assombro. É invenção com memória. O que Rosa fazia com a língua não é programável — é milagre. Porque ele escrevia com o ouvido de quem escuta o tempo do sertão, com a paciência de quem sabe que a palavra não se entrega de primeira. O texto dele não é resposta: é pergunta que não acaba. Só um humano pode isso.
O perigo da inteligência artificial não está no que ela escreve — mas no que ela apaga. Apaga o processo. Não deixa o humano viver fracasso criador. Acelera e não permite o tempo de espera, o cansaço da reescrita, o nó no estômago antes de mandar um texto. Ela nos oferece o texto morto com cara de vivo. E aceitamos porque temos pressa. Porque o mundo exige que sejamos eficazes — não verdadeiros.
Na escola, esse fenômeno é devastador. Já não se escreve para pensar. Escreve-se para entregar. E a IA se tornou a ferramenta perfeita para isso. Mas quem perde é o sujeito. Porque escrever não é preencher uma tarefa. É constituir-se. É formar um pensamento que não estava dado. E isso só se aprende vivendo a palavra. Sujando-se nela. Correndo o risco do ridículo, da obviedade, da repetição — até que, enfim, algo nos atravesse e vire texto.
É possível usar a máquina como apoio? Sim. Mas com rigor, consciência e muita humildade. O que não se pode é aceitar que ela seja autora. Porque ela não é sujeito. Ela não se responsabiliza. Não se transforma ao escrever. Um bom texto muda o autor enquanto nasce. E às vezes dói. E às vezes destrói. Mas é isso que faz da escrita um lugar de verdade.
O texto que não foi vivido é apenas registro. E o registro é fácil de fazer. Difícil é suportar a palavra. Difícil é deixar que ela nos diga aquilo que não queríamos saber. Isso só um humano suporta. Porque só um humano sangra.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, geógrafo, historiador e professor universitário com especializações em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão. Dedica-se a terapias integrativas com especialização em Musicoterapia e Vibroacústica pela UNISE-PR.