Sempre foi assim. Desde que o homem descobriu o fascínio de ser olhado, o mundo se organiza em torno do desejo. A diferença é que agora tudo acontece à luz fria das telas. A internet não inventou o açougue, apenas ampliou o balcão, multiplicou as vitrines e iluminou a carne. O corpo passou a ser mercadoria em tempo integral, e o afeto virou um bem que se negocia e quase nunca tem valor, apenas preço. O que antes era instinto agora é estratégia, algoritmo. E no meio disso, entre os que compram e os que se oferecem, o humano foi se perdendo, cada vez mais retalhado, embalado, vendido, esquecido.
O caso entre Carlinhos Maia e Chulipa não chega a ser um escândalo, mas nos impõe um espelho. Mostra o que acontece quando o poder se infiltra no desejo e o transforma em hierarquia. Um tem o brilho, o palco, o nome que impõe reverência. O outro se aproxima movido pela promessa de pertencimento, pela ilusão de ser visto por quem parece ver o mundo inteiro. No instante do encontro, já não há dois seres livres, há o que domina e o que se entrega. O sexo deixa de ser comunhão e passa a ser consumo. A carne fresca é escolhida, usada e descartada. O poder se alimenta do corpo alheio e cinicamente, conclui; “foi um lance, não sei o que aconteceu comigo”.
Chulipa disse que se sentiu usado, e há uma verdade devastadora nessa frase. Ser usado é descobrir que o toque não significava presença, que o olhar não via, que o prazer não era partilha, mas confirmação. É sair de um encontro com o corpo quente e a alma fria. É perceber que o gesto que parecia ternura era o ritual de manutenção de um império invisível, o da fama e o do tudo posso. E a fama, quando não é contida pela consciência, se torna a mais refinada forma de violência: aquela que destrói o outro de dentro para fora.
O silêncio de Carlinhos Maia até o momento, representa, a posição de quem pode escolher calar. É o privilégio de quem sabe que o tempo limpará tudo, e que o próximo escândalo ou situação difícil, está abaixo do feed. O silêncio do famoso é uma sentença para quem fala, porque o mundo acredita mais no brilho do que na dor. E é essa assimetria que define o nosso tempo: quem sofre precisa provar; quem fere, basta existir.
O sexo, quando atravessado pelo poder, deixa de ser humano. É ali que se revela a mais antiga das corrupções; a da alma que se acostuma a possuir. A fama ensina a usar o outro com certa gentileza. Ensina a sorrir enquanto destrói, a prometer enquanto esvazia, a desejar sem se deixar tocar. Quem vive de ser visto muitas vezes perde a capacidade de ver. O corpo do outro vira cenário, extensão da própria imagem.
A internet apenas deu escala ao que sempre existiu. O açougue se modernizou. Agora a carne não está mais nos becos ou nos bares, está nos perfis. A escolha é instantânea. O desejo é medido em curtidas. Cada deslizar de dedo é um contrato silencioso entre quem quer ser visto e quem quer consumir. E quanto mais fresca a carne, maior o apetite. O amor, nesse ambiente, não tem tempo para germinar. Ele precisa performar.
Eu sei o que é isso. Eu sei o que é ser olhado mais pelo que se representa do que pelo que se é. Sei o que é a vertigem de ser desejado e o vazio que vem depois. Sei o quanto é fácil confundir atenção com afeto, vaidade com amor. Já fiz o jogo. Já usei o brilho como defesa, o charme como escudo, a sedução como forma de controle. Já feri sem perceber, já fui ferido sem merecer. Aprendi, com tempo e ruína, que o poder é uma força insidiosa: ele não invade, vai contaminando. E se não for contido, ele destrói a alma e o corpo, o nosso e o do outro.
A fama é uma espécie de doença que se alimenta de adoração. Quem a possui acredita que o carinho é direito e o desejo dívida que será cobrada ao bem prazer. E é por isso que o poder é tão perigoso: ele dá a sensação de inocência a quem fere. O olhar de quem é admirado carrega a mesma frieza do açougueiro no ofício. Examina, escolhe, corta. E o outro, ofuscado, confunde a lâmina com carinho.
Mas o corpo lembra. Ele carrega na pele o peso do uso, na alma o cansaço da oferta. O corpo sabe quando foi amado e quando foi consumido. E quem já foi escolhido pela beleza, pela curiosidade, pelo status, aprende rápido que toda escolha é um tipo de descarte anunciado. A carne fresca de hoje é o esquecimento de amanhã. O poder se sustenta da novidade, e o amor, quando existe, morre de repetição.
Escrevo tudo isso não como juiz, mas como testemunha. Eu sei quem se aproxima de mim. Sei o que procuram. Sei o que esperam. E sei o quanto é difícil não reproduzir o que um dia nos feriu. Carrego a consciência de que posso ser nocivo, de que o pouco brilho que me protege também queima. E é por isso que escrevo: para não esquecer que o corpo do outro é sagrado, que o toque tem peso, que a palavra tem consequência.
O caso entre os dois é só uma faísca num mundo que já está em chamas. Mostra o quanto o desejo perdeu a delicadeza e o quanto o poder virou forma de sobrevivência. Mostra que todos nós, de alguma maneira, participamos do mesmo açougue: uns exibem a carne, outros escolhem, todos fingem não ver o sangue. O humano, esse resto que ainda insiste, está escondido entre o cansaço e a culpa.
Talvez o que reste seja o gesto mínimo de consciência. Parar antes de ferir. Tocar sem possuir. Enxergar o outro não como carne fresca, mas como alguém que respira. O poder termina quando começa a ternura. O amor começa quando o desejo se curva diante da dignidade.
E se eu escrevo, é porque ainda acredito que a humanidade, mesmo ferida, pode voltar a reconhecer o outro não como vitrine, mas como espelho vivo. E que o corpo, quando olhado com respeito, é o único lugar onde o mundo volta a fazer sentido.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, professor universitário. Apresentador de televisão, atua também na direção e produção executiva de programas de rádio e televisão.
 
								


