Terence Stamp morreu. E é estranho escrever isso, porque ele parecia justamente alguém que nunca morreria. Não que fosse imortal, longe disso, mas porque sua presença na tela tinha algo de indestrutível, como se o tempo não o desgastasse, e o mantivesse como uma rocha. Ele já nasceu com aquela beleza aristocrática e um certo olhar melancólico, e carregou isso até o fim, como um fardo e como uma bênção. Sempre tive a impressão de que o cinema britânico dos anos 60 precisava dele para se afirmar como moderno: lá estava, em “Billy Budd”, não apenas um rosto jovem, mas a promessa de uma pureza destinada à tragédia. E isso, convenhamos, é material de primeiro nível para qualquer cineasta.
Naquela Londres que se queria libertária e fotogênica, Stamp era fotografado, comentado, idolatrado. Mas a verdade é que, desde cedo, parecia já um pouco deslocado, como se não acreditasse inteiramente no próprio mito. “O Colecionador” está aí para provar: um sequestrador perturbado, interpretado não como vilão, mas como um homem que não sabe existir no mundo. Stamp sempre foi melhor quando interpretava esse desajuste essencial, e talvez seja por isso que os grandes papéis dele nunca foram os mais óbvios.
Depois, veio o sumiço. A Índia, os gurus, a busca espiritual. Todos achavam que ele tinha jogado fora uma carreira brilhante. Mas Stamp, ao que tudo indica, não estava preocupado com carreira: queria outra coisa. E quando voltou, estava diferente. O mesmo rosto, agora com uma sombra mais funda. E eis que o cinema descobre nele o vilão ideal: o General Zod de “Superman”. A frase “ajoelhe-se perante Zod” só virou bordão porque ele a dizia como se fosse de Shakespeare, como se cada sílaba pesasse mais do que o próprio planeta Krypton. Foi a consagração, ainda que enviesada: quem nasceu para ser símbolo da juventude livre da década de 60 acabou eternizado como déspota intergaláctico. Mas, se pararmos para pensar, faz todo o sentido.
E, de repente, ele volta a surpreender. Em “Priscilla, a Rainha do Deserto”, está delicado, quase suave, sem perder a firmeza de quem sabe exatamente o que está fazendo. E em “The Limey”, o que dizer? É a vingança seca, o silêncio que pesa mais do que qualquer explosão. Steven Soderbergh lhe deu a chance de ser grande de novo, e Stamp agarrou com as duas mãos. Já não era o galã, nem o vilão de fantasia: era apenas um homem, com toda a fúria e todo o desgaste que o tempo traz.
Se alguém tivesse escrito a carreira de Stamp como roteiro, pareceria exagero: o jovem prodígio, o astro da moda, o místico perdido, o vilão icônico, o ator de culto, o fantasma em “Last Night in Soho”. Mas não, foi vida mesmo. O que impressiona é que ele nunca se agarrou ao passado. Deixou-se transformar, e em cada metamorfose havia a mesma coisa: a presença. Stamp não precisava se esforçar para dominar uma cena. Bastava estar.
Agora, que se foi, fica essa ausência curiosa. Porque não dá para falar de Terence Stamp sem pensar que, em algum lugar, ele continua olhando fixo, em silêncio, com aquele rosto que misturava beleza e gravidade. E talvez seja essa a marca dele: um ator que não interpretava papéis, mas que emprestava a eles a sua própria humanidade. Um homem que sempre esteve inteiro em cada olhar que a câmera guardou.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, crítico de cinema e professor universitário. É membro da Academia Brasileira de Cinema e da União Brasileira de Escritores