Ângela Ro Ro: a combustão que ninguém apagará

Escrever sobre Ângela Ro Ro exige atravessar décadas de música, desordem e coragem, como quem caminha por uma estrada de paralelepípedos molhados em noite sem lua. Não se trata de um adeus fácil, tampouco de um exercício de nostalgia. É antes um mergulho em um Brasil que produziu artistas capazes de transformar o excesso em arte e a dor em matéria bruta de beleza. Ro Ro foi uma dessas figuras que não se encaixam na vida comum, e não estou subjugando a beleza do cotidiano. Preferiu sempre a crueza, a gargalhada atravessada, o piano como instrumento de exorcismo, a vida exposta em primeira pessoa diante de um país que nunca soube lidar com a franqueza.

Desde os anos setenta, quando surgiu, não quis negociar com a delicadeza. A sua música vinha sempre carregada de sal na cicatriz, como se cada nota fosse arrancada da própria garganta em carne viva. Não cultivava a polidez do canto técnico nem a coreografia da diva bem comportada; entregava-se inteira, e nessa entrega havia um convite para que o ouvinte também se despisse das máscaras. Amar em suas canções nunca foi um ato ornamental, mas um risco de sobrevivência, nesse mergulho de duas uma; ou se salva ou se afoga.

Ser mulher no palco, já era uma ousadia. Ser mulher, lésbica, irreverente e debochada num país de moral dupla e conservadorismo latente era insubordinação. Ro Ro não se escondeu atrás de metáforas; chamou o amor por seu nome, falou de corpos, de desejo, de prazer e abandono, tudo em voz alta, sem pedir desculpas. No Brasil dos anos da repressão, essa postura era um manifesto político, ainda que viesse embalada em sarcasmo e melodia.

Foi cronista da própria ruína e do próprio êxtase. Seus discos soam como diários abertos em páginas manchadas de álcool e lágrimas, mas também iluminados por uma ternura inesperada. Quando cantava “Amor, meu grande amor”, não falava de um romance idealizado; mas da urgência de quem conheceu o abismo, da necessidade de se lançar no outro mesmo sabendo da queda iminente. Essa entrega radical é o que a aproxima de uma linhagem internacional de insubmissos; Billie Holiday, Janis Joplin e referência, sem dúvida, para Cássia Eller, todas artistas que arderam em vida e deixaram como herança o testemunho de que a arte só se sustenta quando não aceita ser domesticada.

Ro Ro sempre foi um corpo em combustão, e sua morte apenas sela aquilo que desde sempre se insinuava. Não há surpresa no fim de quem viveu em atrito permanente com convenções, limites e expectativas. Mas há um peso histórico: a ausência de Ângela não é apenas a perda de uma cantora, é o silêncio de uma voz que ousava rir quando esperavam lágrimas e chorar quando esperavam espetáculo. Sua trajetória é lembrança de que a música popular brasileira, tão marcada pela elegância e pela sofisticação harmônica, também teve espaço para a brutalidade. Agora que seu corpo se dissolve no tempo, resta a memória de uma mulher que recusou a paz e escolheu a intensidade. O Brasil que a ouviu, ainda que às vezes com estranheza, nunca poderá apagá-la, porque cada verso deixou uma cicatriz no imaginário coletivo. A morte, no caso de Ângela Ro Ro, é extensão daquilo que sempre foi: uma chama que queima até depois do último acorde.

Fabrício Correia é jornalista, escritor e professor universitário.

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