Foto: Divulgação

Buffalo ‘66

Dirigido e estrelado por Vincent Gallo, “Buffalo ‘66” é uma das obras mais complexas e fascinantes do cinema independente dos anos 90. Gallo não apenas nos conta uma história, mas nos conduz a um estudo profundo da condição humana, onde a tristeza, a solidão e o desespero são examinados com crueza, sem qualquer idealização. O filme, ancorado na figura de Billy Brown, explora um mundo em que o indivíduo está à deriva, preso entre as expectativas frustradas e a incapacidade de se libertar de seu passado.

A trama é simples na superfície: Billy, recém-saído da prisão, sequestra uma jovem chamada Layla, forçando-a a fingir ser sua esposa durante uma visita aos pais, numa tentativa desesperada de manter as aparências. No entanto, essa premissa básica rapidamente se dissolve para revelar um retrato psicológico muito mais complexo. Billy não está apenas encenando uma mentira para enganar seus pais; ele está tentando se convencer de que ainda tem algum controle sobre sua vida. Sua angústia não reside apenas no tempo perdido na prisão, mas no sentimento de que foi traído pela própria existência.

Vincent Gallo, tanto como ator quanto diretor, cria em Billy Brown um personagem que desafia qualquer tentativa de categorizações fáceis. Billy é, ao mesmo tempo, uma figura profundamente desagradável e alguém por quem sentimos compaixão. Suas ações, por mais impulsivas e muitas vezes violentas, são sempre acompanhadas de uma sensação latente de desespero. Gallo nos oferece um protagonista cujas falhas são expostas sem reservas, mas cuja humanidade é impossível de ignorar. Cada gesto, cada olhar de Billy revela alguém que, debaixo da fachada de agressividade, carrega o peso insuportável de um passado do qual não consegue se desvencilhar.

O uso da cidade de Buffalo como cenário não é meramente decorativo. A localidade funciona como uma metáfora visual para a vida de Billy — fria, desolada, presa em um ciclo de decadência e abandono. A direção de fotografia de Lance Acord captura essa paisagem urbana com uma precisão quase cirúrgica. A paleta de cores é dominada por tons frios de azul e cinza, que reforçam a sensação de isolamento que permeia todo o filme. As ruas vazias e os ambientes claustrofóbicos refletem a prisão emocional em que Billy se encontra, criando uma atmosfera de sufocamento constante.

O relacionamento entre Billy e Layla, interpretada por Christina Ricci, é o coração pulsante do filme. Ricci entrega uma performance discreta, mas profundamente comovente. Layla, que a princípio parece uma vítima passiva das circunstâncias, aos poucos revela uma força interna inesperada. Sua interação com Billy é construída não sobre diálogos convencionais, mas sobre olhares e gestos silenciosos, que carregam uma tensão emocional muito mais profunda do que qualquer troca de palavras poderia transmitir. O relacionamento entre os dois não segue o caminho previsível de redenção ou salvação mútua. Em vez disso, é um processo lento e hesitante de descoberta mútua, em que cada um, à sua maneira, tenta encontrar alguma forma de conexão em meio ao caos.

A trilha sonora desempenha um papel essencial na construção do universo emocional do filme. Gallo, com um gosto musical eclético, utiliza faixas de rock clássico e composições originais para intensificar o impacto das cenas. A escolha de “Moonchild”, do King Crimson, durante a cena icônica na pista de boliche, é um dos momentos mais memoráveis do filme. A música, juntamente com a performance de Layla, cria uma atmosfera etérea, quase onírica, que contrasta fortemente com o peso sombrio que domina o resto da narrativa. Esse contraste entre o leve e o pesado, entre o momento de beleza e a crueza da vida de Billy, é um dos grandes triunfos do filme.

O roteiro de “Buffalo ’66” é ao mesmo tempo brutal e poético. Gallo nos apresenta diálogos secos, diretos, muitas vezes desconfortáveis, mas que nunca soam artificiais. A narrativa é fragmentada por flashbacks que revelam, aos poucos, a profundidade dos traumas de Billy, especialmente em relação à sua infância. As cenas em que vemos a relação de Billy com seus pais são de uma frieza e desolação devastadoras. Anjelica Huston, no papel da mãe, é uma figura obsessiva, absorta no futebol e indiferente ao filho, enquanto Ben Gazzara, como o pai, é uma presença apagada, quase inexistente, cujo silêncio diz mais do que qualquer fala poderia.

O clímax do filme evita qualquer tipo de resolução catártica fácil. Quando Billy finalmente confronta o homem que ele acredita ser o responsável por sua tragédia, a cena não explode em violência ou vingança, mas se dissolve em uma espécie de aceitação cansada. Gallo, aqui, recusa os clichês narrativos e opta por um desfecho mais verdadeiro, no qual o protagonista, em vez de obter uma vitória triunfal sobre seus inimigos, reconhece a futilidade da vingança e se permite, pela primeira vez, um vislumbre de vulnerabilidade. Essa escolha torna o final do filme ainda mais poderoso, pois o coloca em sintonia com a verdadeira natureza de Billy — um homem que nunca teve controle sobre sua vida e que, no fundo, sabe que o seu maior inimigo sempre foi ele mesmo.

A cena final, em que Billy retorna para Layla, não oferece respostas fáceis. Não sabemos se ele encontrará alguma forma de paz ou redenção, mas há, naquele instante, um momento de conexão genuína que, por menor que seja, sugere que Billy, por um breve instante, se permitiu acreditar que poderia haver algo mais na vida do que dor e isolamento. Esse vislumbre de esperança é o suficiente para encerrar o filme de forma ambígua, mas profundamente tocante.

“Buffalo ’66” é, sem dúvida, uma obra-prima do cinema independente. Gallo cria uma narrativa que, apesar de sua simplicidade, carrega uma profundidade emocional rara. A direção precisa, a atuação impecável e o uso cuidadoso dos elementos visuais e sonoros fazem deste filme uma experiência cinematográfica única. A recusa em oferecer resoluções fáceis ou redenções artificiais coloca a obra como um dos filmes mais honestos e corajosos de sua geração.

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