Assis. Uma cidade que já carrega séculos de pedras e rezas, agora ganha também o peso insuportável da modernidade transformada em milagre. O corpo de Carlo Acutis, quinze anos quando a leucemia o engoliu, descansa numa urna de vidro. Não é metáfora, é literal. E seus pais estão ali, em pé, olhando o filho exposto ao mundo como se alguém de fato pudesse compreender.
Antonia e Andrea Acutis não têm escolha: são personagens de uma narrativa maior do que eles. Na frente das câmeras, diante das multidões, são “os pais do santo”. Mas atrás dos olhos, atrás da pele cansada, são apenas um casal que perdeu o filho adolescente e ainda precisa acordar todos os dias. Maria também ficou aos pés da cruz. As mães sabem.
Carlo não parecia candidato à eternidade. Usava calça jeans, curtia computador, navegava na internet como qualquer garoto da sua geração. Só que em algum ponto, e ninguém sabe bem como, decidiu que isso não bastava. Decidiu que Deus não precisava de mármore, mas de Wi-Fi. Começou a criar sites, catálogos de milagres, a transformar fé em código digital. Chamava a Eucaristia de “minha estrada para o céu”. Palavras simples como dinamite.
É isso que incomoda e fascina. O menino comum que se recusou a ser comum. Morreu cedo, deixou rastros, e agora Roma o canoniza. Como se dissesse: “é possível, mesmo agora, mesmo neste século cínico, acreditar”.
Mas olhe de novo para a cena. A mãe diante da urna. O pai ao lado, rígido como pedra. Isso não é triunfo. É tragédia convertida em rito. A santidade nunca é fácil, nunca é limpa. É carne rasgada, é amor posto à prova. Os pais não ganham nada com isso. Apenas carregam a eternidade como se fosse uma herança pesada demais.
A Igreja fala em milagres, processos, documentos. Tudo correto, tudo dentro do protocolo. Mas a verdade brutal é outra: Carlo virou santo porque nunca deixou de ser humano. Acreditou com a teimosia que só os jovens possuem e sabia que a fé não é explicação, é incêndio.
No fundo, todo o espetáculo da canonização é sobre nós. Sobre a nossa incapacidade de aceitar que a vida termina no chão duro de um cemitério. Carlo é a resposta: um garoto que morreu e, ainda assim, continua falando. Um corpo que descansa no vidro, mas irradia como se fosse uma bomba atômica de esperança.
É isso.
Não há conclusão elegante.
O santo é um menino.
E seus pais ainda choram.
Fabrício Correia é jornalista, escritor e historiador com ênfase na pesquisa sobre história das religiões. Escreve para o portal Viva Noite.