Se alguém lesse o argumento de “A Garota Ideal” fora de contexto — um homem adulto acredita que sua namorada é uma boneca inflável — talvez esperasse uma comédia vulgar, uma sátira escrachada ou um estudo sociológico cínico sobre a solidão moderna. Mas Craig Gillespie, em direção contrária à caricatura, entrega um filme contido, discreto, e justamente por isso, mais perturbador do que parece.
Lars, interpretado por um Ryan Gosling quase irreconhecível em sua introspecção, vive no fundo da casa do irmão. É educado, religioso, e incapaz de tocar outro ser humano. O toque físico, para ele, é uma violência. Um trauma não revelado o empurrou para fora do convívio. Quando Bianca — uma boneca de silicone com dimensões humanas — surge, não há libido, nem escândalo. Há necessidade. Ela é, simbolicamente, uma escora. Um corpo vazio onde ele pode depositar cuidado sem ser exigido. Ela é o limite que ele pode suportar.
O roteiro de Nancy Oliver, indicado ao Oscar, é inteligente o bastante para nunca transformar Bianca em piada — e para nunca transformá-la em milagre. A boneca não tem voz. Tampouco serve como redenção mágica. É Lars quem precisa percorrer o caminho, e o faz de forma gradativa, silenciosa, quase imperceptível. E é aí que o filme se diferencia. Não se trata de “cura”. Trata-se de convivência com o inaceitável.
Gillespie conduz com firmeza. Evita picos dramáticos, não força compassos de empatia e recusa trilhas sonoras manipuladoras. Tudo é discreto. A paleta fria, os ambientes economicamente decorados, o som quase ausente de ambiência — há uma contenção deliberada que respeita o isolamento emocional do protagonista. Quando a cidade resolve acolher a fantasia de Lars e tratar Bianca como uma pessoa real, não se trata de alienação coletiva. É um pacto comunitário de contenção do dano.
Há uma crítica possível à credulidade desse microcosmo, à suspensão de descrença que o filme exige. Mas o que se vê não é naturalismo. “A Garota Ideal” é uma fábula psíquica. Não se passa num tempo real, mas numa suspensão ética onde a compaixão precisa vencer o constrangimento. É o tipo de gesto que o cinema americano independente dos anos 2000 arriscava — e que hoje raramente se vê fora de nichos autorais.
Ryan Gosling entrega aqui um trabalho de contenção notável. Antes de ser símbolo erótico de “Drive” ou avatar cômico de “Barbie”, ele se dobra em Lars com um tipo específico de entrega: nunca performática, sempre interna. Seus olhos raramente encontram outros. Suas mãos estão sempre ocupadas com nada. Seu corpo é o de alguém que implora para não ser visto. E mesmo assim, estamos com ele o tempo todo.
“A Garota Ideal” poderia ter sido um desastre. Poderia ter sido ofensivo, grotesco, ou apenas estranho. Mas é, de forma inesperada, uma das experiências mais humanas já filmadas sobre o não-amor, sobre o afeto que não sabe por onde começar, sobre a dor que se disfarça de excentricidade. Um filme que confia na capacidade do espectador de não rir.
E isso, num tempo em que tudo precisa ser explicado, defendido, ironizado ou viralizado, já é quase um milagre narrativo.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, cinéfilo e crítico de cinema.