“Clara, onde está meu chá?” além de um título curioso é uma pergunta que atravessa o espetáculo como quem procura algo mais profundo do que uma xícara de cicuta travestida em chá de hortelã. Inspirada em “As Criadas”, de Jean Genet, a montagem dirigida por Nathalie Sbrisse transforma a servidão doméstica em matéria de introspecção contemporânea, e o gesto banal de servir um chá em metáfora do vazio que separa o eu do outro.
Um corpo para três atos
Rodrigo Costa, sozinho em cena, traz três personagens e, ao mesmo tempo, nenhum. A Madame e suas criadas, as irmãs Clara e Solange habitam o mesmo corpo, sem que o ator precise anunciar as transições. Elas simplesmente acontecem, como se o ar do palco as movesse. Não há truques visuais, apenas um jogo cênico com pequenos objetos e adereços, e nem disfarces de voz. O que se vê é a carne de um intérprete em tensão constante, tentando manter acesas as fronteiras da identidade que se desmancha.
Rodrigo evita o naturalismo; não chega a interpretar na linhagem clássica, comenta. E é nesse comentário que reside a força de sua presença. A cada gesto, ele lembra ao público que aquilo é teatro e é justamente por sabermos disso que acreditamos nele. Há humor, ironia e um controle notável do tempo, mesmo quando o riso se torna incômodo. O ator entende que, em Genet, toda obediência é uma forma de fingimento.
A direção: juventude sem ingenuidade
A direção de Nathalie Sbrisse revela uma mente inquieta e instintiva. Jovem, ela conduz o espetáculo com senso de economia e poesia. Não busca a pompa da encenação clássica; prefere a crueza de um quarto em desalinho, onde cada objeto tem uma biografia secreta, que cabe ao ator revelar ou não.
O telefone vermelho, o manequim nu, a xícara; tudo é símbolo, mas nunca alegoria óbvia. Sbrisse parece compreender que o teatro é feito de sugestões, não de certezas. Há nela uma disciplina silenciosa: o controle do espaço, o cuidado com o ritmo, a coragem de deixar o vazio respirar. Embora o ator incorpore sua própria trilha sonora. Sua encenação dialoga com o improviso sem se perder nele. O espetáculo mantém coerência mesmo quando flerta com o caos.
A cena como jogo
O texto se constrói na fronteira entre ritual e brincadeira. Rodrigo joga com o público, desmonta o personagem, volta a montá-lo. Fala de si e, de repente, fala de nós. As pequenas inserções de humor; a menção aos aplicativos de namoro, as alusões ao cansaço das relações de trabalho servem como pausas de humanidade, respiros que iluminam o tema maior da peça: o desejo de escapar de uma estrutura que se repete.
Essas interferências não são meras modernizações; são reflexos de uma época em que as hierarquias mudaram de forma, mas não de essência. O poder ainda se disfarça de gentileza, e o teatro, mais uma vez, revela o que o cotidiano esconde.
Entre o TAPA e o improviso
Seria impossível não lembrar da montagem do Grupo TAPA, com seu rigor e sua devoção à forma. Lá, Genet é tratado como arquiteto: cada palavra uma pedra.
Aqui, em “Clara, onde está meu chá?”, Nathalie e Rodrigo preferem o terreno irregular da experiência. Não constroem catedral, armam uma tenda. O espetáculo joseense é artesanal, confessional, feito de pequenas verdades. É a precariedade que o torna belo.
Duas estrelas e um elogio maior
Em uma escala convencional, “Clara, onde está meu chá?” talvez merecesse duas estrelas de cinco. Mas essa medida é injusta. O espetáculo é pequeno em meios, grande em intenção. Tem o frescor daquilo que ainda está sendo descoberto. Rodrigo Costa confirma-se um ator de corpo expressivo e mente desperta, capaz de sustentar uma hora de cena sem se repetir. Nathalie Sbrisse mostra que a juventude, quando aliada à inquietação, pode produzir um teatro mais verdadeiro do que muitas montagens “acabadas”. No fim, a pergunta de Genet permanece, reescrita com o sotaque de agora: quem serve quem? A resposta, talvez, esteja no próprio veneno.