Entre os muitos modos de ler a obra de Inês Pedrosa, talvez o mais fiel seja vê-la como um trabalho constante de captura das vidas em seu trânsito mais fugaz, como quem coleciona fragmentos capazes de revelar tanto a fragilidade quanto a persistência da experiência humana. Ao longo de sua carreira, desde a estreia com “A Instrução dos Amantes” em 1992, Pedrosa construiu uma prosa que se equilibra entre a precisão narrativa e a atenção ética, explorando temas como a memória, a identidade e as tensões afetivas sob o peso da história. Jornalista, cronista e autora de romances que se tornaram referência na literatura portuguesa contemporânea, como “Nas Tuas Mãos” e “Fazes-me Falta”, a escritora transita entre a ficção e o comentário agudo do presente, mantendo sempre uma assinatura reconhecível: o olhar que se detém nos detalhes humanos para compreender o desenho maior do mundo.
Em “Desamparo”, publicado originalmente em 2015, essa vocação crítica e sensível atinge um novo patamar. A narrativa se constrói a partir de um ponto de partida simples: a queda doméstica de Jacinta, mulher portuguesa que passou boa parte da vida no Brasil e regressa ao seu país no ocaso da existência. Esse episódio inicial, quase banal, abre caminho para um mergulho no passado, revelando uma família marcada por distâncias afetivas e conflitos de interesse. Os filhos são espelhos de um Portugal contemporâneo atravessado por desigualdades e desencanto: Rafael, rico e distante; Rita, de vida modesta, mas movida por disputas materiais; e Raul, o mais próximo da mãe, preso a um trabalho que não o realiza, à frustração de uma vocação artística abandonada e à sensação de destino inescapável.
A história ganha nova tensão com a entrada de Clarisse, figura que acompanha Raul e, após a morte de Jacinta, intervém com gestos que insinuam a possibilidade de mudança. Não se trata de uma redenção fácil, mas de um deslocamento que rompe, ainda que parcialmente, o ciclo de repetições que aprisiona o protagonista. Nesse movimento, a autora amplia o sentido do título: o desamparo não é apenas carência de apoio, mas um estado de desalojamento profundo, em que se perde o vínculo com o outro e consigo mesmo.
Arrifes, a aldeia fictícia onde parte da narrativa se passa, é mais do que cenário. É uma força silenciosa que condiciona o comportamento das personagens e espelha o próprio país, marcado pela simultaneidade de tradições persistentes e contaminações do capital. Em “Desamparo”, o espaço se sobrepõe ao tempo: o presente parece suspenso, repetitivo, sem promessa de futuro, e o passado, longe de ser refúgio, revela outras formas de dureza.
A grande força do romance está na forma como Inês Pedrosa transforma esses elementos num painel multifacetado, alternando vozes e perspectivas, explorando os impasses do amor, da lealdade e da sobrevivência ética numa sociedade regida por valores competitivos e individualistas. A literatura, aqui, não se limita a espelhar o mundo: denuncia, interroga e abre brechas para imaginar outras formas de estar nele.
Clarisse, com sua insistência silenciosa na alteridade, é o ponto de luz desse livro. Sua presença reintroduz um valor ético em tempos de retraimento afetivo, lembrando que a atenção ao outro pode ser ato de resistência. É nesse encontro. sempre precário, sempre ameaçado que “Desamparo” encontra sua dimensão mais profunda: a consciência de que, mesmo num mundo moldado pela lógica do capital e pela erosão dos vínculos, ainda é possível criar espaços de cuidado.
Serviço:
“Desamparo”, de Inês Pedrosa. Publicado em Portugal pela Dom Quixote em fevereiro de 2015 e lançado no Brasil pela Editora Leya em agosto de 2016. 264 páginas.
Nota: ★★★★☆