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Crítica: “Nascido em 4 de Julho” – A pátria que fere os seus filhos

O que Oliver Stone faz em “Nascido em 4 de Julho” não é cinema de guerra. É cinema de luto. E não por soldados mortos, mas pelos vivos que a América deixou para trás — amputados, humilhados, invisíveis. O protagonista, Ron Kovic, existiu. Serviu, acreditou, matou, voltou. E foi apagado como se fosse um erro de digitação na história oficial. Este filme é sua revanche. Não se trata de um épico. É uma queda. E Tom Cruise — que até então era símbolo do heroísmo enlatado de Hollywood — entrega aqui a melhor atuação de sua vida. Não porque brilha, mas porque apaga. Porque se deixa despir de tudo o que fazia dele um astro: beleza, charme, controle. No lugar do galã, surge um homem em ruínas. E essa ruína tem nome, data, rosto e país.

O filme começa com aquela estética que toda família americana sonha em pendurar na parede: bairro limpo, mãe católica, escola conservadora, discurso inflamado sobre liberdade e Deus. Mas tudo ali já carrega a semente da tragédia. Cada cena da infância de Kovic é uma moldura prestes a rachar. Quando ele vai para o Vietnã, não é por falta de alternativa — é por excesso de crença. E esse é o maior horror: ele acreditava mesmo que estava salvando o mundo. A guerra é filmada sem espetáculo. Nada de slow motion, nada de heroísmo de última hora. Só caos, gritos, sangue no chão, corpos errados sendo alvejados. Kovic, como tantos, mata um inocente. Depois, é alvejado. O que volta para casa não é um herói. É um corpo paralisado com a alma em coma.

E aí o filme cresce. Porque é ao voltar que a guerra realmente começa. A guerra contra o abandono, contra a burocracia, contra a indiferença da pátria que o vestiu de glória e agora o despe no silêncio. Ele grita — e ninguém ouve. Ele protesta — e o chamam de traidor. Ele tenta amar — e seu corpo não responde mais. A América, que o formou como homem, o castrou como sujeito. Tom Cruise, em cadeira de rodas, suando, chorando, perdido, é o oposto do símbolo que ele representava. E é por isso que sua atuação é tão potente: porque não atua, implode. Ele é o homem que acreditou demais, que deu tudo, e que descobre que a bandeira americana não cobre ninguém quando o frio da verdade chega.

A trilha de John Williams, contida, melancólica, parece pedir perdão. Mas o filme não perdoa. “Nascido em 4 de Julho” não é uma história de superação. É uma acusação em alto e bom som. Um país que não cuida de seus veteranos não merece nem as medalhas que forja. Oliver Stone, ele mesmo um ex-combatente, não filma com neutralidade. Filma com raiva. Mas não é panfleto. É poesia amarga. Cada plano é uma pergunta: quantos Ron Kovics ainda existem? Quantos garotos ainda acreditam na mesma mentira?

E no fim, o silêncio do público diante do discurso de Kovic no Congresso é mais eloquente do que qualquer resposta. “Nascido em 4 de Julho” não quer que o espectador saia do cinema em paz. Quer que ele saia perturbado. Porque amar um país não é repetir seus slogans. É exigir que ele seja melhor. E Ron Kovic, com tudo o que perdeu, faz isso com mais dignidade do que qualquer general de desfile. Um filme indispensável.

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