Crítica: “Vício Maldito”, de Blake Edwards

“Vício Maldito” (Days of Wine and Roses, 1962), com Jack Lemmon e Lee Remick, é um daqueles filmes que, vistos hoje, revelam o quanto o cinema clássico tinha coragem de encarar temas que o tempo tentou suavizar. No início dos anos 60, ainda antes da contracultura tomar de assalto Hollywood, Blake Edwards filmava como se estivesse em plena era de ouro, mas jogando luz em um abismo que permanecia escondido: o álcool como destruição íntima e como espetáculo social.

Lemmon, até então reconhecido por papéis mais leves, a comédia elegante de Billy Wilder em “Se Meu Apartamento Falasse”, a persona do homem comum que sabia rir de si mesmo, surge aqui despido de qualquer ironia. Seu Joe Clay é um homem que aprende a beber como forma de se enturmar, mas que termina soterrado pelo hábito. É chocante porque Lemmon, com seu rosto tão humano e vulnerável, traduz a vertigem da autodestruição sem necessidade de grandes arroubos. Basta olhar o tremor da mão, a vergonha dos olhos, a queda de um corpo que já se encontra no chão.

Transportado para os dias de hoje, “Vício Maldito” ressoa. A sociedade atual, saturada de ansiolíticos, bebidas energéticas, redes sociais e novas formas de dependência, enxerga no alcoolismo retratado por Edwards um símbolo expandido: a fragilidade humana diante de qualquer substância ou mecanismo que prometa alívio imediato. Se ontem o copo de uísque era a fuga, hoje pode ser a tela do celular ou a dose de fentanil. A modernidade apenas multiplicou os venenos, mas o vazio que Lemmon interpreta permanece o mesmo.

Ao mesmo tempo, rever o filme é também relembrar a força de um cinema que confiava no ator, no close, na duração das cenas. Edwards não precisava de cortes frenéticos ou música invasiva para mostrar a ruína; bastava a câmera fixa diante de Lemmon e Remick para que o espectador respirasse o desconforto. É uma lição para o presente: talvez falte ao cinema contemporâneo essa coragem de se demorar no silêncio, na vergonha, na lenta decomposição do rosto humano.

“Vício Maldito” é, portanto, um espelho ainda atual, um clássico que expõe como o prazer pode se converter em maldição e como a intimidade entre duas pessoas pelo vício vai se diluindo na química amarga de um copo. E Jack Lemmon, com sua entrega absoluta, continua sendo a prova de que um ator, em determinado papel, pode atravessar décadas e falar diretamente a um presente que se julga distante, mas que ainda reconhece a própria queda refletida na tela.

Fabrício Correia é crítico de cinema, escritor e jornalista. Integra a a Academia Brasileira de Cinema e a União Brasileira de Escritores.

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