Foto: Divulgação

Estreia: “A Verdadeira Dor” – Quando o peso do passado amplia o vazio do presente

Jesse Eisenberg tem um jeito particular de olhar o mundo. Seu cinema não busca respostas fáceis, não se conforta em narrativas redentoras e, sobretudo, não teme a angústia. Há algo sempre inquieto em seus personagens, uma ansiedade latente que nunca encontra descanso. Em “A Verdadeira Dor”, seu segundo longa como diretor, essa inquietação ganha corpo, matéria, e se transforma em uma obra de profundidade absurda, onde cada silêncio, pausa, riso abafado ou olhar escondem um universo de dores não resolvidas. Eisenberg nos presenteia com um filme que se ramifica alem da identidade e os laços familiares corroídos pelo tempo, tornando-se um reflexão perene sobre o peso do passado e a impossibilidade de fugir dele.

“A Verdadeira Dor” poderia, em mãos menos hábeis, ser apenas um road movie indie com tons de tragicomédia, a história de dois primos que viajam à Polônia para explorar suas raízes judaicas. Mas Jesse Eisenberg nunca se contentaria com a obviedade. Seu roteiro, indicado ao Oscar, que se estrutura em camadas, constrói personagens que se revelam aos poucos, e cada descoberta é um golpe. O que começa como uma viagem de reconhecimento se torna uma jornada de confronto, onde a história de uma família se entrelaça com a tragédia de um povo, e o que deveria ser uma excursão pelo passado se torna uma experiência insuportável sobre o presente. O filme é sufocante porque Eisenberg entende que o que nos destrói não é necessariamente o que vivemos, mas o que herdamos, aquilo que nos foi transmitido como uma ferida invisível, que nunca cicatriza completamente.

Jesse Eisenberg não está sozinho nessa missão. Kieran Culkin, em um desempenho que redefine sua carreira, eleva “A Verdadeira Dor” ao patamar das grandes obras sobre luto e pertencimento. Culkin, que já havia mostrado seu talento em “Succession”, traz para Benji uma complexidade rara de se ver no cinema atual. Ele é, ao mesmo tempo, um bufão e uma alma perdida, alguém que usa o sarcasmo como escudo e o humor como fuga. Seu Benji ri para não sucumbir. E quanto mais ri, mais percebemos o abismo dentro dele. Há momentos em que sua energia lembra um jovem Al Pacino, mas há também algo de Dustin Hoffman em seu olhar – um misto de inteligência desesperada e cansaço crônico de existir.

O roteiro dá a ele um espaço generoso para explorar essas contradições, mas é o ator quem faz com que cada palavra soe como uma confissão involuntária. Culkin habita Benji com uma autenticidade desconcertante. Há uma cena em particular, já na reta final do filme, em que ele fica em silêncio por um tempo que parece interminável. É ali que percebemos a grandeza da sua atuação. Nenhuma lágrima escorre, nenhum grito é dado, mas a dor é tão palpável que atravessa a tela. Poucos atores conseguiram esse feito, transmitir o vazio de um personagem sem precisar dizê-lo em palavras.

E então há Jesse Eisenberg, o diretor. Seu trabalho demonsta que o cineasta encontra-se em plena maturidade criativa. Se em “When You Finish Saving the World” ele ainda flertava com o tom satírico, aqui ele mergulha na densidade emocional sem medo de sufocar o espectador. Sua câmera é econômica, sem firulas, sem a necessidade de impressionar. Sabe exatamente quando se aproximar, quando recuar, quando deixar o silêncio preencher a tela. É um cinema que respeita a dor, que não tenta explicá-la, que simplesmente a apresenta em sua forma mais crua e inegociável.

A Polônia, deixa de ser apenas o cenário e na direção de Eisenberg vira um terceiro protagonista, um espaço onde o passado é um fantasma constante. Cada rua, prédio, museu visitado pelos personagens carrega consigo um peso invisível. O filme jamais cai na armadilha do sentimentalismo ou da reconstrução histórica artificial. Ele não busca ilustrar o trauma, mas sim explorar sua ressonância. Benji e David não são sobreviventes do Holocausto, mas carregam suas sombras. Como tantos descendentes de vítimas de tragédias, vivem o paradoxo de se sentirem herdeiros de um sofrimento que não foi diretamente vivido, mas que está impresso em sua genética emocional.

Essa é, talvez, a grande sacada de “A Verdadeira Dor”. O filme nos lembra que a dor histórica não pertence apenas ao passado. Ela sobrevive nos gestos, nos medos, nas palavras não ditas, se manifesta em acessos de raiva, em crises de riso, em silêncios constrangedores. E, acima de tudo, em um vazio que se instala sem que possamos explicá-lo.

Volto a falar de Kieran Culkin, seu Benji é prova definitiva de que a atuação, quando alcança seu nível máximo de excelência, transborda a técnica. Ele não interpreta Benji. Ele é Benji. Em cada cena, não nos convida, nos força a sentir sua dor, mesmo quando ela se manifesta em piadas, mesmo quando ele nos afasta. Ao seu lado, Jesse Eisenberg constrói um personagem que, de maneira oposta, internaliza tudo. Enquanto um explode, o outro implode. É esse jogo de forças que torna o filme tão fascinante.

“A Verdadeira Dor” não busca redenção. Não há lições de moral, não há reconciliação forçada. O que Eisenberg nos entrega é um retrato brutalmente honesto do que significa existir em um mundo onde o passado nunca desaparece completamente. É um filme que não conforta, mas que se infiltra em nós de maneira irreversível. Ele nos obriga a olhar para as feridas invisíveis, para as dores que carregamos sem saber, para os traumas que se acumulam nas entrelinhas da vida.

WhatsApp
Facebook
Twitter