Sean Baker consolida sua posição como um dos grandes cineastas do nosso tempo com “Anora”. Indicado ao Oscar de 2025, o filme é um mergulho profundo nas contradições de uma sociedade que transforma todas as relações humanas em transações. Sem jamais ceder ao sentimentalismo ou ao didatismo, Baker constrói uma narrativa que desafia o espectador a olhar para a complexidade das conexões humanas em um mundo onde até mesmo o amor pode ser comprado e vendido.
A história segue Ani, vivida por Mikey Madison em uma performance que redefine os limites do que esperamos de uma protagonista no cinema contemporâneo. Ani é dançarina e prostituta no Brooklyn, uma sobrevivente de um sistema que a reduz a um produto. Quando conhece Ivan, interpretado por Mark Eydelshteyn, herdeiro de um oligarca russo, os dois se envolvem em um relacionamento que começa como uma troca, mas rapidamente evolui para algo muito mais complicado. Um casamento impulsivo em Las Vegas parece ser uma fuga, mas logo se torna o catalisador de um conflito maior: a tentativa da poderosa família de Ivan de anular a união e reafirmar seu controle.
Ani é, sem dúvida, uma das personagens mais complexas e fascinantes criadas recentemente. Mikey Madison entrega uma atuação que encontra ecos na intensidade visceral de Gena Rowlands em “Uma Mulher Sob Influência” e na vulnerabilidade de Giulietta Masina em “Noites de Cabíria”. Ani não é uma vítima passiva nem uma heroína redentora; ela é uma mulher em guerra constante consigo mesma e com o mundo que a cerca. Madison traduz essa dualidade com uma precisão que transcende a técnica, tornando impossível para o público não se conectar profundamente com Ani, mesmo nos momentos em que ela comete erros ou toma decisões moralmente ambíguas.
Mark Eydelshteyn, como Ivan, é o complemento perfeito para Madison. Ivan poderia facilmente ter sido reduzido a um arquétipo — o homem rico e privilegiado que se sente entediado com sua vida confortável. No entanto, Eydelshteyn confere ao personagem uma humanidade inquietante. Ivan é vulnerável e, em muitos momentos, pateticamente preso à sombra de sua família. Sua relação com Ani é construída sobre uma base de desequilíbrio, mas, ainda assim, é genuína em sua intensidade. A química entre os dois atores é palpável, e suas cenas juntos são carregadas de tensão emocional e complexidade.
Sean Baker, conhecido por filmes como “Projeto Flórida” e “Tangerine”, eleva aqui sua abordagem semidocumental a um nível quase hipnótico. A câmera, operada pelo brilhante Alexis Zabe, é uma testemunha intrusiva, capturando os momentos mais íntimos e vulneráveis de seus personagens. As ruas do Brooklyn, com sua confusão caótica, são contrastadas com os espaços opulentos e frios do mundo de Ivan. Essa oposição visual é um reflexo direto do dilema de Ani, que tenta navegar entre dois mundos que parecem igualmente hostis.
A trilha sonora de Daniel Lopatin é um dos grandes triunfos do filme. Lopatin mistura sons eletrônicos com ruídos urbanos e melodias melancólicas, criando um pano de fundo sonoro que amplifica a alienação dos personagens. Cada nota parece sussurrar as palavras que os personagens não conseguem dizer, enquanto o design de som nos coloca diretamente no caos de suas vidas.
“Anora” se insere em uma tradição de obras que exploram a luta dos marginalizados contra forças maiores do que eles. Há ecos do neorrealismo italiano de “Ladrões de Bicicletas” e “Rocco e Seus Irmãos”, mas Baker não está interessado em homenagens. Ele constrói uma narrativa que é inconfundivelmente sua, usando as ferramentas do cinema contemporâneo para capturar uma realidade que é ao mesmo tempo universal e profundamente pessoal.
A mercantilização das relações humanas é o tema central de “Anora”, mas Baker nunca faz disso um manifesto. Ele apresenta o sistema em que seus personagens estão presos com uma honestidade brutal, mas também encontra beleza nos pequenos momentos de conexão genuína. Ani e Ivan, apesar de todas as forças que os separam, encontram algo que parece real, mesmo que por um instante. É nesses momentos que o filme atinge seu clímax emocional, lembrando-nos de que, mesmo em um mundo onde tudo parece à venda, ainda há espaço para a humanidade.
A ambiguidade do final de “Anora” é outro de seus grandes méritos. Baker não oferece respostas fáceis ou redenções improváveis. Ani não é recompensada nem punida; ela continua, como todos nós, a navegar pelo caos de sua existência. Essa honestidade é rara e profundamente impactante, deixando o espectador com a sensação de ter testemunhado algo profundamente verdadeiro.
Com performances extraordinárias, uma direção impecável e um roteiro que nunca subestima a inteligência do público, o filme se torna uma das experiências cinematográficas marcantes dos últimos anos. “Anora” não busca agradar; ele exige ser sentido. E essa é, talvez, a sua maior força.