A história do cinema testemunha, vez ou outra, uma obra que desafia os cânones, desmantela fórmulas e reconfigura a percepção do espectador sobre um gênero. “Emilia Pérez”, dirigido por Jacques Audiard, é esse tipo raro de filme. Um híbrido entre musical, thriller e drama político-social, não apenas reimagina as convenções narrativas do cinema contemporâneo, mas faz isso com uma ousadia estrutural e temática que desafia o conforto da audiência.
Audiard, um cineasta de assinatura vigorosa, já havia provado seu domínio sobre o cinema de gênero com “O Profeta” (2009) e “Dheepan: O Refúgio” (2015), ambos narrativas cruas sobre a sobrevivência em mundos hostis. Mas aqui, ele se lança em um território completamente distinto, ancorado em uma estética maximalista que, paradoxalmente, se equilibra em uma sensibilidade intimista. Se seus filmes anteriores exploravam a violência e o desamparo com um realismo impiedoso, “Emilia Pérez” se permite a extravagância do espetáculo, sem jamais se desconectar da profundidade emocional que o diretor sempre privilegiou.
O longa conta a história de Rita (Zoë Saldaña), uma advogada insatisfeita que recebe uma proposta inusitada: ajudar o temido chefe do narcotráfico Manitas Del Monte (Karla Sofía Gascón) a desaparecer e ressurgir como Emilia Pérez, a mulher que sempre soube ser. O que poderia se desenrolar como um mero thriller criminal com pitadas de melodrama se expande para um musical operístico impressionante.
Audiard utiliza o cinema como palco para um espetáculo de identidade e redenção. A trilha sonora, composta por Clément Ducol, entrelaça a narrativa com um lirismo cortante, onde cada canção revela camadas psicológicas dos personagens sem jamais reduzir a densidade dramática. Não se trata de um musical no molde clássico hollywoodiano, onde números musicais interrompem a ação para momentos de escapismo. Aqui, a música é uma extensão da psique dos personagens, reforçando suas dores, desejos e a inevitabilidade do destino.
A performance de Karla Sofía Gascón é a espinha dorsal do filme. Sua interpretação de Manitas/Emília é absolutamente magnética, oscilando entre brutalidade e vulnerabilidade com um domínio impressionante. Gascón traz uma fisicalidade intensa ao papel, e a transição de Juan para Emília se dá não apenas por meios estéticos ou narrativos, mas pela entrega corporal e emocional da atriz. Emilia emerge como um símbolo de renascimento, não apenas para si, mas para toda a estrutura narrativa do filme.
Zoë Saldaña, por sua vez, oferece um contraponto perfeito à energia de Gascón. Sua Rita é uma mulher desiludida, que encontra na história de Emilia um espelho para suas próprias frustrações e anseios. Saldaña interpreta com nuances, permitindo que sua personagem evolua sem pressa, tornando sua trajetória uma das mais fascinantes da trama. Já Selena Gomez, em um papel que poderia ser relegado à mera coadjuvância, surpreende ao conferir uma dimensão inesperada à esposa de Manitas; Jessica: uma mulher presa entre a lealdade e a revelação.
Visualmente, “Emilia Pérez” é um deslumbre. Audiard, que sempre flertou com um realismo sujo, se entrega aqui a uma estética vibrante e estilizada, com direção de arte exuberante e uma fotografia que brinca com contrastes de luz e sombra para evidenciar a dualidade dos personagens. Há ecos do cinema de Pedro Almodóvar, principalmente na maneira como a cor e a mise-en-scène são utilizadas para expressar estados emocionais, mas Audiard jamais perde sua identidade autoral.
O roteiro, coescrito por Audiard, Léa Mysius, Thomas Bidegain e Nicolas Livecchi, constrói uma narrativa que escapa da previsibilidade. O filme não se contenta em ser um estudo de personagem ou um conto de redenção: ele é, antes de tudo, um manifesto sobre a fluidez da identidade e a capacidade do indivíduo de se reconstruir.
A estrutura episódica pode desorientar um espectador acostumado a narrativas lineares, mas é essa escolha que reforça a complexidade da história. Emilia não é apenas alguém em transformação, mas uma ideia que reverbera em todos ao seu redor.
A ousadia do filme reside na maneira como desafia expectativas sobre masculinidade, poder e liberdade. É um musical que não segue as regras do gênero, um thriller que não depende da ação, um drama que se recusa a ser uma tragédia. “Emilia Perez” subverte sem perder a acessibilidade, provocando sem alienar, emocionando sem recorrer a sentimentalismos fáceis.
O desfecho é tão poderoso quanto a jornada. Emilia, enfim, encontra sua verdade, e o filme nos deixa com uma sensação rara no cinema contemporâneo: a de ter testemunhado algo realmente novo, algo que não se encaixa em fórmulas pré-existentes.
Jacques Audiard projeta-se como um dos diretores mais criativos de sua geração e eleva Karla Sofía Gascón para uma das performances mais impactantes do ano. Se há justiça no cinema, o Oscar, embora já “pululem” intrigas no decorrer da premiação, deveria reconhecer a grandiosidade deste filme.
Seja como obra cinematográfica, experiência estética ou ensaio sobre identidade, “Emilia Perez” já nasceu clássico.