“Flow” é um filme que desafia as convenções narrativas e reafirma a força do cinema como linguagem universal. Dirigido pelo letão Gints Zilbalodis, a obra, sem diálogos, expande a estética minimalista de seu antecessor “Longe” e se apresenta como um tratado visual sobre coexistência, sobrevivência e a frágil relação entre o homem e a natureza, ainda que protagonizado por animais. A animação, vencedora do Globo de Ouro e indicada ao Oscar nas categorias de melhor animação e melhor filme internacional, parte de uma premissa simples: após uma enchente devastar sua casa, um gato embarca em uma jornada ao lado de uma capivara, um lêmure, um pássaro e um cachorro, navegando por um mundo transformado. A trama, que poderia se contentar com a linearidade de uma fábula tradicional, encontra força na ausência de palavras, permitindo que a expressividade dos movimentos, a composição dos planos e o desenho sonoro assumam a condução da narrativa.
A opção pelo silêncio não é um ato de resistência à verborragia que assola boa parte da produção cinematográfica contemporânea. O espectador não recebe explicações, diálogos expositivos ou qualquer forma de condução didática. Em vez disso, Zilbalodis aposta na potência da imagem, explorando a plasticidade dos cenários e o dinamismo das interações entre os personagens para construir uma experiência sensorial que se desenrola no tempo e no espaço. O diretor, que já havia demonstrado sua habilidade na construção de atmosferas contemplativas, aqui aprimora sua abordagem, permitindo que cada cena funcione como um microcosmo de significados. A narrativa emerge das ações e reações dos personagens, dos pequenos gestos e olhares que substituem palavras e reforçam o peso da solidão e da coletividade.
O longa não se furta a explorar camadas filosóficas. Em sua essência, a jornada dos animais evoca um arquétipo mitológico, um êxodo em busca de um novo lar, atravessando um mundo transformado por forças incontroláveis. O paralelo com a Arca de Noé é evidente, mas “Flow” se afasta da ideia de uma intervenção divina e se aproxima mais da inevitabilidade da mudança. O que move os personagens não é uma promessa de redenção, mas a necessidade pura e simples de sobreviver. E é nessa travessia que os conflitos e alianças emergem, revelando que a convivência entre diferentes é tanto uma imposição quanto uma escolha. Há uma carga simbólica na seleção dos animais: o gato, independente e intuitivo; a capivara, sociável e resiliente; o lêmure, curioso e brincalhão; o pássaro, livre e observador; o cachorro, leal e protetor. São representações de traços humanos condensados em figuras antropomorfizadas sem excessos caricaturais.
A estética de “Flow” é uma aula de economia narrativa e sofisticação visual. O design dos personagens e dos cenários se alinha ao estilo de animação digital característico de Zilbalodis, que combina um realismo etéreo a um traço limpo e depurado. Os espaços vazios não são apenas cenários, mas elementos narrativos que reforçam a sensação de vastidão e incerteza. A movimentação da câmera, fluida e constante, conduz o espectador por uma jornada sensorial que dispensa cortes abruptos ou artifícios desnecessários. Tudo em “Flow” sugere um estado de transição, um deslocamento permanente que ecoa a própria condição humana diante do desconhecido.
Se há uma mensagem em “Flow”, ela se manifesta de forma orgânica, sem discursos didáticos ou lições explícitas. A obra sugere, em seus silêncios e pausas, uma reflexão sobre a vulnerabilidade da vida e a necessidade de adaptação em um mundo em constante transformação. O filme fala sobre medo e esperança, sobre isolamento e comunhão, sobre a fragilidade das certezas e a força das alianças improváveis. Em um cenário cinematográfico saturado por estímulos excessivos e explicações redundantes, “Flow” se impõe como um raro exemplo de como o cinema pode ser poderoso quando confia na força de sua própria linguagem.
Gints Zilbalodis reafirma-se como um autor singular, capaz de criar narrativas profundamente humanas sem recorrer a palavras. “Flow” é uma animação excepcional e um lembrete de que o cinema, em sua essência mais pura, é uma arte da imagem e do movimento. Aplaudir o filme é quase redundante. Ele já fala por si.