Pablo Larraín entrega em “Maria Callas” o ato final de sua trilogia sobre grandes nomes femininos do século XX. Diferentemente de “Jackie” e “Spencer”, que exploravam momentos específicos da vida de suas protagonistas, este filme é um olhar fragmentado e introspectivo sobre os últimos dias da maior soprano do século passado. Com Angelina Jolie no papel principal, o diretor chileno adota uma abordagem ousada, misturando metalinguagem, musicalidade e imagens oníricas para pintar um retrato íntimo, mas inquietante, da diva em decadência.
Larraín se reinventa, fugindo das convenções tradicionais da cinebiografia. O filme abandona a linearidade e assume um caráter quase experimental. A presença de Ed Lachman como diretor de fotografia traz uma paleta visual marcante, que transita entre o preto e branco e as cores saturadas, simbolizando as memórias e os delírios de Callas. A escolha estética é um espetáculo à parte, um reflexo do estado psicológico fragmentado da protagonista. Esse diálogo visual confere ao filme uma textura emocional que, por si só, eleva a obra a um nível artístico raro no cinema contemporâneo.
Angelina Jolie surpreende ao encarnar Callas com uma performance que equilibra o melodrama e a sobriedade. Ela evita os excessos que tantas vezes marcam representações de figuras quase míticas, como o caso de Callas, e em vez disso, opta por uma atuação contida, revelando as vulnerabilidades da diva. Sua Callas é uma mulher consumida por arrependimentos, mas ainda carregada de uma presença magnética. Jolie não tenta “imitar” a soprano; ela a interpreta como uma construção humana, cheia de nuances, conferindo dignidade a um personagem que se recusa a ser reduzido a um símbolo.
O roteiro de Steven Knight, embora ambicioso, é o ponto mais polarizador do filme. A tentativa de abarcar momentos cruciais da vida de Callas, como seu romance com Aristóteles Onassis e sua conturbada relação com o mundo da ópera, às vezes pesa na fluidez narrativa. Algumas cenas parecem mais focadas em cumprir uma lista de eventos históricos do que em capturar a essência da mulher por trás do mito. Ainda assim, Larraín suaviza essas transições ao usar elementos metalinguísticos. O jovem cineasta fictício, vivido por Kodi Smit-McPhee, funciona como um espelho que reflete a teatralidade inerente à vida de Callas. Ele nos lembra que, para ela, a existência foi sempre um espetáculo, seja nos palcos ou na vida pessoal.
O filme brilha especialmente quando abraça sua natureza operística. A música, como era de se esperar, é um personagem em si. Larraín utiliza árias icônicas de Callas como pontes emocionais, costurando o passado e o presente da protagonista. Essas sequências são momentos de pura poesia visual e auditiva, reforçando a tragédia que permeia a narrativa. A frase “Minha vida é ópera, e não há razão na ópera”, dita pela própria Callas em um dos momentos mais memoráveis, traduz perfeitamente o espírito da obra.
Entretanto, “Maria Callas” não se contenta em ser apenas uma celebração da arte da soprano. É também uma meditação sobre a mortalidade e o legado, sobre o peso de uma vida vivida sob os holofotes. Larraín questiona: como uma figura tão monumental lida com a irrelevância e o esquecimento? Essas reflexões tornam o filme profundamente humano, mesmo quando flerta com o sublime.
O desfecho é um golpe emocional. Rodeada por fantasmas e memórias, Callas encontra-se sozinha, encarando o vazio de uma existência que sempre exigiu tudo dela. A câmera de Lachman capta Jolie em um close devastador, enquanto uma das últimas árias da soprano ecoa ao fundo, encerrando a narrativa com uma melancolia quase insuportável. É aqui que o filme atinge seu auge: ao transformar a tragédia pessoal de Maria Callas em algo universal.
“Maria Callas” não é uma obra perfeita – e nem pretende ser. É fragmentada, por vezes indulgente, mas também sublime em sua ousadia. É um filme que, como sua protagonista, desafia rótulos e desafia convenções.