RaMell Ross conduz “O Reformatório Nickel” com precisão estética e uma abordagem narrativa que rompe convenções. Baseado no romance de Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer, o filme revisita um passado brutal e evidencia como o racismo estrutural molda gerações. Mais que um relato histórico, é um mergulho sensorial na dor, na amizade e na resistência. Inspirado na infame Dozier School for Boys, onde jovens negros sofreram abusos sob o pretexto de correção social, Ross rejeita o realismo tradicional e constrói um labirinto de percepções, colocando o espectador na pele de quem vive a injustiça.
A jornada de Elwood Curtis, interpretado com intensidade por Ethan Herisse, se desenha entre a crueza dos fatos e a subjetividade da memória. Jovem brilhante, acredita na justiça e nos ensinamentos de Martin Luther King até ser preso injustamente e enviado ao reformatório Nickel. Ali, conhece Turner, vivido por Brandon Wilson, que lhe oferece uma visão cínica do mundo. O embate entre idealismo e pragmatismo estrutura a narrativa, e a amizade entre os dois se torna um eixo emocional potente. Turner ensina a Elwood que o sistema não foi feito para salvá-los. Elwood resiste ao cinismo com uma fé dolorosa, mas necessária.
Ross não se limita a expor a violência física e psicológica do reformatório. Ele traduz sensorialmente seu impacto, rejeitando uma progressão linear e explorando múltiplas perspectivas. O tempo se dilata e se contrai, confundindo passado e presente, memória e realidade. A montagem desorienta: cortes abruptos, cenas repetidas com variações sutis e silêncios que dizem mais que palavras constroem uma experiência fragmentada, refletindo como o trauma se infiltra na percepção do tempo.
O horror do filme não está na exposição gráfica da violência, mas na tensão contida nos gestos, nos olhares e nos espaços vazios. A fotografia de Jomo Fray captura a brutalidade e a efemeridade da luz sobre os muros da Nickel Academy, evocando o lirismo de Terrence Malick. A paleta de cores resseca a tela, reforçando o ambiente de punição e apagamento. Ross privilegia um cinema contemplativo, no qual os detalhes sustentam o impacto emocional.
As performances elevam o filme. Ethan Herisse comunica a angústia de Elwood com um olhar que carrega medo, esperança e resistência. Brandon Wilson, mais expressivo, encarna a revolta silenciosa de quem já viu demais. Aunjanue Ellis-Taylor, no papel da avó de Elwood, tem poucas cenas, mas sua presença traduz a sabedoria amarga de quem conhece as armadilhas do sistema.
A reta final é um golpe devastador. Ross conduz a revelação sem pressa, tornando o impacto inevitável. A experiência do espectador se alinha à dos personagens: não há fuga, apenas a constatação brutal de uma verdade inescapável.
Apesar das indicações ao Oscar de melhor filme e melhor roteiro adaptado, a ausência em categorias como direção e fotografia reflete o viés da Academia contra cineastas negros que subvertem padrões narrativos. Ainda assim, “O Reformatório Nickel” se impõe como uma das obras mais importantes do ano. Não busca emoção fácil nem finais redentores. É um testemunho de injustiça, um lembrete de que o passado ainda assombra o presente. Ross entrega um filme que não se apaga com os créditos. Ele fere. E transforma.
Disponível no Prime Video.