Quarenta anos depois, “Paris, Texas” volta à tela dos cinemas com a nitidez da restauração em 4K e a intensidade de um encontro marcado pela memória. O que se assiste é um reencontro com uma experiência estética que atravessou o tempo, com a beleza da dureza dos dias e a revelação daquilo que permanece quando todas as palavras cessam.
Travis (Harry Dean Stanton), caminhando perdido pelo deserto, ainda é a figura do exílio interior, do homem que se dissolve na paisagem árida como se buscasse uma forma de se reconstituir a partir do nada. O deserto filmado por Robby Müller é ferida exposta com abutres sobrevoando esperando a hora exata do óbito. A ampliação da imagem, agora sem a opacidade da película envelhecida, não retira a aspereza ao contrário, acentua o pó, as cores abrasivas, o silêncio das pedras. Tudo se torna mais cru, e mais belo, porque a dureza sempre teve nesse filme a sua delicadeza secreta.
E então chega o instante que justifica quatro décadas de espera: Nastassja Kinski, na cabine de vidro, imóvel e viva, com um dos rostos mais lindos da história do cinema. Não se trata de beleza fria, mas de uma espécie de revelação: o rosto como lugar onde a dor se manifesta e, ao mesmo tempo, se oferece como promessa de reencontro. Sua juventude congelada em celuloide é agora vista em altíssima definição, mas nada disso importa; o que inebria é a emoção intacta. A câmera de Wim Wenders acolhe magistralmente o instante em que o olhar dela devolve ao mundo a humanidade perdida de Travis.
Rever o filme é reconhecer que o tempo acrescenta espessura a certas imagens. O slide guitar de Ry Cooder ainda corta como vento em noite aberta. O gesto de Travis ao recuar, ao entregar o filho e desaparecer, conserva uma pureza quase bíblica. “Paris, Texas” não envelheceu nenhum dia porque registra a condição humana: do silêncio, da separação, da tentativa desesperada de costurar o que foi rompido, às vezes sem retorno.
Assistir ao filme em uma sala de cinema em 2025 é ser lembrado de que o cinema, quando atinge sua forma mais alta, é capaz de ser ao mesmo tempo brutal e terno, seco e milagrosamente poético. Quarenta anos se passaram e, diante daquele deserto e daquele rosto, continua sendo impossível escapar à sensação de que estamos vendo algo definitivo.
Fabrício Correia é crítico de cinema, escritor e professor universitário. Integra a Academia Brasileira de Cinema e a União Brasileira de Escritores.