Retratar Bob Dylan no cinema é um desafio que exige mais do que uma simples imitação – é necessário capturar sua aura enigmática, seu talento singular e sua constante reinvenção. “Um Completo Desconhecido”, dirigido por James Mangold, encara essa missão com audácia e precisão ao mergulhar nos anos decisivos da carreira do cantor, quando ele abandonou o folk acústico e abraçou a guitarra elétrica, transformando a música e dividindo opiniões. No centro dessa narrativa está Timothée Chalamet, que entrega uma interpretação magnética, capturando não apenas o jeito de Dylan, mas também sua essência artística.
Desde o anúncio da produção, a escolha de Chalamet gerou expectativas e dúvidas. Seria ele capaz de fazer justiça a uma figura tão icônica? O resultado prova que sim. Chalamet não apenas reproduz os maneirismos de Dylan – a postura curvada sobre o violão, o olhar penetrante sob os cabelos desgrenhados, a voz anasalada e arrastada –, mas também transmite sua inquietação criativa e sua personalidade ambígua. Há uma autenticidade notável em sua atuação, principalmente porque ele próprio canta e toca todas as músicas no filme, recusando qualquer tipo de dublagem. A entrega é total, e, em diversos momentos, a sensação é de que estamos diante do próprio Dylan.
A performance de Chalamet se sustenta, em grande parte, graças ao trabalho cuidadoso de James Mangold na direção. Conhecido por suas cinebiografias musicais, como “Johnny & June”, sobre Johnny Cash, Mangold sabe equilibrar drama e música sem recorrer à estrutura engessada dos filmes biográficos convencionais. Em vez de tentar abarcar toda a trajetória de Dylan, ele escolhe um recorte específico: a transição dos cafés boêmios de Greenwich Village para os palcos lotados de um público dividido entre admiração e revolta. Essa escolha dá ao filme um ritmo coeso e intenso, concentrando-se no momento em que Dylan deixou de ser apenas uma promessa do folk para se tornar um artista de vanguarda.
A reconstrução de época é um dos maiores trunfos de “Um Completo Desconhecido”. A fotografia em tons nostálgicos transporta o espectador para o fervilhante cenário cultural da década de 1960, com detalhes meticulosos na ambientação dos clubes noturnos, nas roupas dos personagens e até nos cartazes e jornais que aparecem ao fundo. A trilha sonora, composta por interpretações de clássicos de Dylan, reforça a autenticidade do longa e funciona como um fio condutor para a jornada emocional do protagonista.
Além de Chalamet, o elenco de apoio desempenha um papel fundamental na construção do filme. Monica Barbaro assume o desafio de interpretar Joan Baez, musa e parceira musical de Dylan, trazendo à tona a complexidade da relação entre os dois. A química entre Barbaro e Chalamet é palpável, e o filme explora tanto a cumplicidade artística quanto os conflitos decorrentes da decisão de Dylan de seguir um caminho diferente. Edward Norton, por sua vez, dá vida a Pete Seeger, figura emblemática do folk tradicional, cuja decepção com Dylan reflete o choque de gerações que marcou a virada do artista para o rock. Elle Fanning e Boyd Holbrook completam o elenco com personagens que ajudam a contextualizar a cena musical da época, adicionando camadas à narrativa.
O ápice do filme se dá na reconstituição do histórico Festival de Newport de 1965, quando Dylan eletrificou sua música e provocou reações acaloradas do público. Essa cena, filmada com uma intensidade quase documental, sintetiza a essência do longa: um artista que se recusava a ser aprisionado por rótulos e que estava disposto a desafiar qualquer expectativa, mesmo que isso significasse enfrentar vaias. É um dos momentos mais poderosos de “Um Completo Desconhecido”, onde Chalamet, em plena performance, praticamente desaparece na pele de Dylan.
A grandeza do filme reside justamente em sua capacidade de capturar as contradições de Dylan sem tentar explicá-lo completamente. Ele surge como um jovem sedento por absorver referências musicais e criar algo novo, mas também como alguém que mantém uma aura de mistério mesmo para aqueles mais próximos. “Um Completo Desconhecido” não tenta decifrar Dylan – pelo contrário, abraça seu enigma, mantendo o fascínio ao invés de reduzi-lo a uma fórmula narrativa simplista.
A decisão de James Mangold de focar em um período específico evita os vícios comuns do gênero, como a abordagem didática que tenta resumir toda uma vida em poucas horas de projeção. Em vez disso, ele permite que o público sinta a transformação de Dylan como algo orgânico, moldado tanto por suas experiências pessoais quanto pelo ambiente cultural da época. O roteiro evita frases de efeito ou explicações forçadas, optando por diálogos sutis que revelam mais pelos olhares e gestos do que pelas palavras.
Mesmo com todas essas qualidades, “Um Completo Desconhecido” pode dividir opiniões – assim como o próprio Dylan fez em sua época. Fãs puristas podem torcer o nariz para algumas escolhas do roteiro, enquanto espectadores menos familiarizados com a trajetória do músico talvez sintam falta de uma introdução mais abrangente. Ainda assim, o filme cumpre com maestria a missão de transmitir o espírito revolucionário de Dylan e seu impacto na cultura pop.
No final, a produção se revela mais do que uma cinebiografia: é uma celebração do poder transformador da música. Com uma atuação hipnotizante de Timothée Chalamet, um elenco afiado e uma direção inspirada, “Um Completo Desconhecido” é um filme que transcende o gênero e se torna uma experiência cinematográfica vibrante. A sensação que fica ao término da projeção é a de ter testemunhado um artista em plena ebulição criativa – e de que, mesmo depois de tantas décadas, Bob Dylan continua sendo, em muitos aspectos, um completo desconhecido.