A canção começa com delicadeza, mas não pede licença. “Minha vida tem sentido”, entoa Padre Júlio Lancellotti. Não há microfone, não há púlpito. Há apenas uma sala, um piano e a presença de três homens que, reunidos, desafiam os códigos religiosos com o que há de mais puro: afeto.
Ao piano, Leandro Karnal. Filósofo. Ateu. Homossexual. Um homem que construiu sua trajetória questionando os dogmas da fé e desfiando, com rigor, os fios do pensamento religioso. E ali está ele, com serenidade e técnica, acompanhando com as mãos aquilo que sua razão talvez não nomeie como sagrado, mas seu coração reconhece como profundo. Ele não apenas toca — ele oferece.
Júlio canta. Sua voz não tem vaidade. Tem entrega. Tem história. Tem a marca de quem já lavou pés feridos, de quem já abençoou corpos tidos como malditos, de quem já ouviu gritos de fome e respondeu com o que tinha: presença. Ele canta como quem sabe que cantar, ali, é mais do que louvar — é acolher.
E então, no momento mais imenso da cena, o gesto. Júlio estende a mão, não em direção ao piano, mas ao amor que está logo ao lado: Vitor Fadul. Cantor. Jovem. Autista. Companheiro de Karnal. Trinta anos mais novo. Júlio o chama com um gesto simples, porém monumental: venha.
Vitor se aproxima. Não há hesitação. Há doçura. Há respeito. Há reconhecimento. Ele se junta aos dois, completa a imagem, e o que se vê não é mais apenas uma cena doméstica. É um chamado. Um retrato do cristianismo que os evangelhos anunciaram e que os homens tentaram sufocar.
O vídeo postado no Instagram de Padre Júlio não é um protesto. É uma revelação. Em um país onde a religião tantas vezes exclui, pune, vigia, ali está um sacerdote católico cantando uma canção de fé acompanhado por um ateu, e chamando para perto um homem autista e gay — não para tolerar, mas para abençoar.
A canção segue. Mas tudo já foi dito. Porque, ao chamar Vitor para junto de si, Júlio consagra aquilo que a doutrina hesita em nomear: a santidade do afeto entre dois homens. O piano não julga. A canção não mede. O gesto não interroga. Todos ali sabem: amor não é desvio — é destino.
Vitor, que tantas vezes deve ter sido olhado como frágil, ali é força. Leandro, que tantos imaginaram distante da fé, ali é ponte. Júlio, que muitos chamam de herege, ali é sacerdote de um altar que não cabe nos templos.
Não se trata de uma encenação. É evangelho vivo. Um evangelho que acontece não nas palavras, mas no olhar, no corpo, na escuta.
Não há autoridade eclesiástica que possa revogar o que aquela imagem selou: o cristianismo não é pertença de quem grita mais alto. É caminho de quem acolhe primeiro.
O vídeo termina com a canção ainda ecoando. Mas, para quem viu, há caminhos. Porque ali, naquela sala, entre um piano, uma canção e um gesto, o amor foi chamado pelo nome. E o nome dele — naquele instante — era sagrado.
Fabrício Correia é escritor, crítico de
cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.