Foto: Arte digital – FC/Prequel

Lilia Cabral: a mulher que nunca foi Helena — ainda bem

No Brasil das novelas — onde várias protagonista se chamaram Helena e quase todo vilão acaba caindo da escada ou indo parar num hospício —, há uma atriz que faz o caminho contrário. Lilia Cabral nunca foi Helena. E isso, senhores, é um elogio. Enquanto algumas atrizes imploravam para viver uma das musas neuróticas de Manoel Carlos no Leblon, Lilia estava ocupada demais sendo a mulher mais temida do horário nobre. Com um olhar que pode fatiar um presunto e uma entonação que faria Freud rever seus conceitos sobre recalque, ergueu, tijolo por tijolo, o trono de antagonista mais complexa da televisão brasileira.

E não pensem que isso veio por acaso. Lilia não nasceu para a vilania. Ela chegou lá do modo mais duro — pelo talento. Começou no teatro, ainda nos anos 1980, sem curtidas em rede social, nem capa na “Caras”, óbvio que depois foi catapultada pelo talento para todas. Começou fazendo drama sério. Enfrentou a esnobaria da elite cultural e ainda assim cresceu. Quando finalmente aportou na televisão, tinha mais estofo do que muitas protagonistas com sobrenome duplo.

Aos que perguntam por que Lilia nunca foi uma das tais Helenas, a resposta já foi dada, com precisão de punhal afiado, por Manoel Carlos, em uma carta rara que circula nos bastidores da dramaturgia:
“Lilia é maior do que qualquer Helena que eu poderia escrever. Ela tem uma tempestade nos olhos e um vulcão na fala. Não conseguiria escrevê-la com a delicadeza que uma Helena exige — ela é mais interessante do que isso.”

Eis a questão: Lilia não é personagem de novela. É personagem de Dostoiévski. Enquanto as Helenas flutuam pelo Leblon entre um vinho branco e uma crise existencial, Lilia arrebenta as portas com o salto agulha da amargura. Em “Páginas da Vida”, sua Marta virou ícone do desamor materno. Odiada, sim. Mas também estudada, discutida, comentada em mesas de bar e encontros de psicanálise. O público a detestava — e ela sabia que isso era um prêmio.

Agora, com Maristela em “Garota do Momento”, Lilia Cabral nos entrega sua obra-prima em vilania. Uma mulher que não precisa tramar: ela age. Não calcula: executa. Se for necessário dopar a nora com uma dose cavalar de comprimidos, ela o faz com a naturalidade de quem passa manteiga no pão. É uma vilã que não se acha má. E é justamente isso que a torna perigosa.

“Um grande vilão raciocina rápido”, disse a atriz em entrevista ao “Extra”. E ninguém duvida: Maristela raciocina como quem respira. Rica, entediada, alcoólatra e carente, ela encontra no próprio motorista — pobre homem — um substituto para a falta de afeto. Ao se deitar com ele, ela não está buscando prazer, mas vingança contra o vazio que ela própria construiu.

Mas Lilia não é feita só de vilãs. É atriz de repertório. De palco, de bastidores, de ensaio em dia de chuva e da velha escola de não reclamar. Fez teatro quando teatro era resistência, não passaporte para um perfil azul no Instagram. Trabalhou com direção rigorosa, sem improviso. E carrega nos ombros o peso da ética artística — aquela que se aprende lendo Stanislavski e vendo Fernanda Montenegro.

Seu nome foi grafado errado nos créditos de “Tieta”? Foi. E ela reclamou. Não por vaidade, mas por respeito. Hoje, num mundo onde o esquecimento é digital e a reputação cabe em caracteres, Lilia exige o que lhe é de direito: memória. É como se dissesse, sem dizer: “Errei muito para que o público acreditasse em mim. Me escrevam certo.”

Não é exagero dizer que a televisão brasileira seria outra sem Lilia Cabral. Em um país que sempre teve boas vilãs, nenhuma soube humanizá-las como ela. Nenhuma fez o público amar odiá-la com tanto entusiasmo. Nenhuma transformou rancor em dramaturgia tão fina.

Hoje, com mais de 60 personagens no currículo, Lilia não precisa provar mais nada. Mas ainda assim prova, a cada cena, que a televisão pode ser arte — desde que se tenha uma atriz disposta a ir até o fundo do abismo. E voltar com um troféu.

Ela não foi Helena. E por isso mesmo, com todo respeito a obra do querido Manoel Carlos, foi tudo o que as Helenas nunca conseguiram ser: inesquecível.

Fabrício Correia é escritor, crítico de
cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.

WhatsApp
Facebook
Twitter