Morreu neste domingo (20), aos 74 anos, a cantora, compositora e pesquisadora Maria Cristina Buarque de Hollanda, uma das figuras mais respeitadas do samba brasileiro. Discreta e rigorosa em suas escolhas, Cristina travava uma longa batalha contra um câncer e vivia há anos na bucólica Ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro, onde comandava rodas de samba e mantinha viva a tradição dos grandes mestres.
Filha do historiador Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista Maria Amélia, Cristina nasceu em São Paulo, em 1950, e cresceu entre livros, partituras e silêncios. Irmã caçula de Chico Buarque, Miúcha e Ana de Hollanda, escolheu desde cedo trilhar um caminho artístico próprio, recusando com firmeza o uso da fama familiar como atalho. Ao contrário: tornou-se conhecida nos meios musicais pela independência estética, pela profunda erudição sobre o samba e pelo ouvido apurado para descobrir pérolas esquecidas do gênero.
Sua estreia discográfica aconteceu em 1967, como convidada de Paulo Vanzolini, no clássico álbum Onze sambas e uma capoeira, com a interpretação do samba “Chorava no meio da rua”. A partir dali, mergulhou de vez no universo dos bambas da velha guarda. Mas foi em 1974 que Maria Cristina ganharia reconhecimento com seu primeiro disco solo, Cristina, que trazia uma interpretação definitiva de “Quantas Lágrimas”, de Manaceia — um marco silencioso na história do samba.
Apesar do prestígio e da demanda de público, Cristina jamais se curvou ao circuito dos grandes palcos. Preferia as rodas, os encontros informais, os ensaios em quintais e os becos do samba carioca. Em Paquetá, passou a ser chamada de “Chefia” — apelido carinhoso que expressava o respeito com que era tratada pelos colegas músicos. Para muitos, ela era uma verdadeira enciclopédia viva do samba, com memória invejável, ouvido refinado e uma ética artística irretocável.
Em sua discografia enxuta, mas valiosa, estão títulos como Prato e faca (1976), Arrebém (1978), Vejo amanhecer (1980) e Resgate (1994), este último um tributo às raízes mais profundas do samba tradicional. A partir dos anos 1990, passou a assinar artisticamente como Cristina Buarque, assumindo com serenidade o sobrenome que sempre evitou explorar, mas sem nunca permitir que ele a definisse.
Cristina foi farol para gerações de cantoras como Marisa Monte e Mônica Salmaso, que beberam de sua fonte com reverência. Marisa, por exemplo, conheceu a canção “Esta Melodia” graças ao LP Prato e faca, de Cristina, e anos depois a regravou em seu cultuado disco Verde, anil, amarelo, cor-de-rosa e carvão (1994).
Nas redes sociais, o filho da artista, Zeca Ferreira, prestou uma homenagem breve e comovente: “Ser humano mais íntegro que eu já conheci. Farol, chefia, braba, a dona da porra toda. Vai em paz, mãe.”
Em tempos de estrelismos e espetáculos, Maria Cristina Buarque de Hollanda escolheu ser profundidade. Rejeitou o brilho fácil, mas iluminou o que muitos não enxergavam. Com sua morte, o Brasil perde mais do que uma cantora — perde uma guardiã da memória afetiva do samba, uma mulher que viveu para manter vivo o que os outros já haviam esquecido.
Cristina não era de muitos discos, nem de muitas entrevistas. Era de escutar mais do que falar, de servir à música mais do que à vaidade. E foi justamente por isso que se tornou imensa.
Hoje, o samba está mais silencioso. Mas, como tudo que é verdadeiro, sua voz ainda ecoa — nas rodas, nos vinis, nas esquinas, nas lágrimas. Quantas lágrimas.