Em “A Substância”, Coralie Fargeat entrega uma obra provocativa que escancara os dilemas mais íntimos da condição humana ao mesmo tempo em que critica a superficialidade de uma sociedade obcecada pela juventude e pela aparência. No centro dessa narrativa está Elisabeth Sparkle, uma atriz outrora venerada, mas agora relegada ao esquecimento pela passagem do tempo e pelos padrões implacáveis da indústria do entretenimento. Demi Moore incorpora essa personagem com uma intensidade fora do comum, expondo as feridas e fragilidades de uma mulher em luta contra a própria obsolescência. Sua interpretação é visceral, especialmente nos momentos em que Elisabeth encara seu reflexo e questiona quem realmente é.
A trama, em sua essência, explora o abismo entre ser e parecer. Elisabeth, seduzida por uma promessa de rejuvenescimento absoluto, submete-se a um tratamento experimental que dá origem a Sue, uma versão jovem e “idealizada” de si mesma, interpretada pela hipnotizante Margaret Qualley. A relação entre as duas não é apenas simbólica, mas profundamente dialética: Elisabeth e Sue são ao mesmo tempo reflexos e rivais, espelhos que distorcem e multiplicam os dilemas da identidade. Essa convivência forçada entre a essência e a cópia logo se transforma em uma batalha, não apenas pela fama e relevância, mas pela própria sobrevivência.
Coralie Fargeat, de “Vingança” e “Reality +”, conhecida por sua audácia visual, faz de “A Substância” um espetáculo visual perturbador, que evoca as obras-primas do horror corporal sem jamais perder seu caráter único. As transformações físicas das personagens são retratadas com um grotesco que, longe de ser gratuito, ecoa as angústias existenciais que permeiam a narrativa. A câmera, ora claustrofóbica, ora deslumbrante, captura cada detalhe dessa metamorfose com um olhar cirúrgico, enquanto a trilha sonora pulsante de Raffertie amplifica a sensação de desconforto e urgência.
Filosoficamente, o filme questiona a própria definição de identidade. O que nos torna quem somos? Elisabeth, ao confrontar Sue, não está apenas enfrentando uma versão mais jovem de si mesma, mas também os fantasmas de suas próprias inseguranças e arrependimentos. A obsessão pela juventude, tão central à narrativa, não tece um comentário único sobre a indústria do entretenimento, mas um reflexo de uma sociedade inteira que privilegia o efêmero em detrimento do duradouro, o superficial em antítese ao essencial.
Nesse sentido, “A Substância” dialoga com ideias clássicas da filosofia, especialmente aquelas ligadas à noção de essência. Elisabeth e Sue são, de certo modo, encarnações da velha questão: até que ponto podemos modificar a substância sem destruir aquilo que ela é? Sue, com sua beleza impecável e juventude artificial, representa o ideal inatingível que tantas vezes é imposto às mulheres, enquanto Elisabeth, marcada pelo tempo e pela experiência, carrega o peso de uma vida vivida. Ambas são necessárias para que a narrativa funcione, mas é na tensão entre as duas que o filme encontra sua força.
A crítica à sociedade do espetáculo, tão presente no filme, é tanto visual quanto narrativa. Fargeat expõe, sem sutilezas, a violência simbólica dos padrões de beleza, revelando como eles corroem não apenas o corpo, mas também a alma. A escolha de Demi Moore como protagonista não é acidental: ela mesma, uma figura icônica da Hollywood dos anos 80 e 90, carrega em sua própria trajetória os ecos das questões exploradas no filme. Sua presença em “A Substância” confere à obra uma camada adicional de metalinguagem, transformando a narrativa em algo ainda mais pessoal e inquietante.
Disponível na MUBI, “A Substância” transcende o horror corporal para se tornar uma meditação profunda sobre a busca pela perfeição e o custo dessa busca. É uma obra que provoca desconforto não apenas pelo que mostra, mas pelo que sugere, desafiando os espectadores a confrontarem suas próprias ideias sobre beleza, identidade e envelhecimento. Coralie Fargeat, com sua direção precisa e audaciosa, reafirma-se como uma das cineastas mais instigantes de sua geração, entregando um filme que é ao mesmo tempo visceral e profundamente filosófico.
Em um mundo onde a imagem parece valer mais do que qualquer outra coisa, “A Substância” é uma lembrança poderosa de que, no final, é a substância – e não a superfície – que define quem realmente somos. Uma obra prima provocadora, e que deixará marcas profundas em qualquer um que se atrever a encará-la de frente.