Sempre suspeitei que o Brasil, esse laboratório tropical de milagres improvisados, acabaria produzindo sua própria versão de Pee-wee Herman. Não o Pee-wee debochado, urbano, consciente do próprio ridículo. Mas um Pee-wee batizado num tanque de água morna, educado dentro de uma moral televisiva onde a brancura artificial de cada sorriso bastasse.
Esse Pee-wee brasileiro; higienizado, plástico, moralizante sempre teve nome e sobrenome: Rinaldi Faria. E teve também seus emissários coloridos: Patati e Patatá, criação que funciona como síntese da estética que ele ofereceu ao país. Um universo onde alegria é dever, pureza é norma e toda fantasia é cuidadosamente polida para que nenhuma fresta revele sombra, desejo ou complexidade.
Mas havia sombras. Sempre houve.
Patati e Patatá, vistos de perto, carregam o mesmo desconforto que Pee-wee carregava em seus melhores (e piores) anos: a impressão de que por trás da inocência esticada como elástico havia algo desalinhado, um desequilíbrio silencioso, uma excentricidade que não combinava com a pregação moral que o cercava. Pee-wee assumia sua esquisitice com orgulho. Rinaldi tentava canonizar a própria.
Enquanto os palhaços giravam pelo palco com aquele fervor que só bonecos humanizados conseguem exibir, a estrutura por trás deles se consolidava como um culto: tudo ali passava por uma mira única, a de Rinaldi, que tratava cada elemento como se fosse parte de sua igreja particular, onde o colorido servia de cortina para um controle absoluto.
Patati e Patatá funcionavam como a trindade colorida de sua doutrina e o público, sempre tão carente, tão ansioso por garantias de pureza aceitava a liturgia sem questionar o altar.
Acontece que nenhum altar inventado resiste ao tempo sem rachaduras. Daniela Beyruti percebeu isso com a precisão de quem sabe que herdar o SBT não é conservar um museu, mas desarmar alguns feudos, e principalmente lidar com o achismo da estrutura familiar, que na época do pai sempre foi só adorno. O império de Rinaldi, sustentado por lógica moralizante e estética congelada, já não conversava com a emissora que tenta sobreviver num país onde a televisão só respira quando se move.
Assim, sua saída não é só profissional. É tectônica. É simbólica. É uma demolição elegante de um reinado que ele acreditava estar construindo. Um reino onde Patati e Patatá eram mais do que personagens: eram metáfora de um controle pastoral, travestido de entretenimento, que só prosperou porque Silvio Santos, em sua genialidade bondosa, sempre acolheu o caos, até mesmo o caos que se acreditava santo.
O SBT pós-Rinaldi é um organismo que tenta se realinhar ao mundo real. Um mundo onde inocência fabricada não basta, onde alegria de laboratório não convence, onde a fantasia infantilizada precisa competir com narrativas que não se sustentam apenas com purpurina e lição de moral.
Rinaldi, esse Pee-wee catequético, cai antes que alguém precise derrubá-lo. Cai porque o tempo finalmente revelou aquilo que estava escondido sob décadas de espuma: o desejo de intocabilidade, a ambição silenciosa de ser mais do que o papel mandava, a fantasia de que sua estética moral poderia se transformar em trono.
E, no fim de tudo, sobra a cena mais simbólica: Patati e Patatá, agora órfãos da doutrina maior, livres para serem apenas o que sempre deveriam ter sido palhaços, não profetas.
E piriri e pororó.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, professor universitário e SBTISTA, ainda, sem carteirinha.



