O menino do Banhado: uma história em celebração a Páscoa

Em São José dos Campos, cidade inteligente, resiliente e sustentável, mas ainda de contrastes e algumas vidas abafadas, há uma linha invisível que separa o futuro do abandono. Uma parte se exibe nos parques tecnológicos, nos prédios espelhados e nas avenidas largas. A outra, oculta sob o barro do Banhado, resiste em palafitas, fogões à lenha e promessas por cumprir. É ali, no coração de um dos patrimônios naturais mais belos do Vale do Paraíba, que Rosa mora — e crê.

Rosa é mulher de mãos calejadas e fé antiga. Devota de Nossa Senhora desde menina, aprendeu com a mãe que o terço é escudo e o silêncio, oração. Trabalha como auxiliar de limpeza num CECOI na zona leste, desses centros infantis onde o Estado chega pelas mãos terceirizadas de uma OS. É quem limpa os banheiros, desentope os ralos, recolhe os brinquedos e cuida dos afetos que sobram. Faz tudo com um cuidado maternal, como se preparasse o caminho para o próprio filho que crescia, inquieto, em seu ventre.

Zé Cícero, o marido, é marceneiro. Filho de carroceiro, conhece o ofício da madeira desde que o pai o levava na carroça para buscar sobras de demolição nos bairros altos. Hoje, em uma marcenaria improvisada nos fundos de um galpão no Putim, é especialista em cadeiras de balanço — daquelas de palha entrelaçada, com braços largos e cheiro de casa antiga. Quando soube que seria pai, prometeu fazer um berço como nunca fizera: madeira de cedro, encaixes firmes, e uma reza entre os pregos. Mas o menino veio antes do tempo.

Na quinta-feira da semana anterior à Páscoa, Rosa entrou em trabalho de parto antes do previsto. A bolsa rompeu no meio da noite, o vento soprava, e o céu estava baixo. Não houve tempo para hospital, ambulância ou protocolo. No quarto estreito da casa, Rosa deitou sobre um lençol rasgado, enquanto Zé puxava o feno que guardava para as galinhas. Chamaram dona Severina, que foi parteira em Pau d’Arco, cidade do Pará, que deixou quando o filho foi assassinado por um posseiro. Foi ali, sobre aquele improviso de esperança e renovo, que o menino nasceu. Pequeno, rosado, de olhos serenos. Era sexta-feira, e a cidade ainda não sabia que havia renascido ali uma nova história.

No domingo de Páscoa, enquanto os bairros com água encanada e energia elétrica trocavam ovos com embalagens douradas, o Banhado celebrava outro tipo de doçura. Padre Miguel, da Pastoral do Povo da Rua, que toda semana celebra missa no Jardim Satélite para quem tem mais cicatriz do que endereço, desceu o morro com uma pequena cruz de madeira e uma batina já desbotada. Atendeu ao chamado de Rosa, que queria batizar seu filho no dia da Ressurreição de Cristo. A igreja, naquela manhã, foi o quintal. O altar, uma mesa de laminado com apenas três pernas e algumas latas de tinta empilhada para ela não “bambear”. O incenso, o cheiro de terra molhada.

“Francisco será o nome dele,” disse Rosa, segurando o filho enrolado num cobertor emprestado. “Em honra ao santo e ao papa, que cuida dos pobres como Maria cuidou de Jesus.”

Padre Miguel ungiu a fronte do menino com água morna de garrafa térmica e proclamou: “Este é o filho da esperança. Nasceu na palha, como o Cristo. Veio antes do tempo, como a fé. É sinal de que o amor ainda mora onde ninguém olha.”

Zé Cícero, em silêncio, terminou o berço naquela tarde. Fez um segundo, com as mesmas medidas, e deixou em frente à casa de uma vizinha grávida, junto a um bilhete escrito à mão: “Pra quando vier a sua Páscoa.”

E assim, no Banhado de São José — onde a cidade não investe, mas Deus insiste —, nasceu Francisco. Não em berço de ouro, mas em um montinho feno e uma montanha ternura. A São José dos Campos das promessas tecnológicas ainda não sabe, mas é lá, entre os barracos e o capim alto, que o futuro verdadeiro já começou. Não de bytes, mas de bênçãos. Não de vidro, mas de madeira. Não de algoritmos, mas de afeto.

Porque há berços que embalam não só crianças, mas também a possibilidade de um mundo mais justo. E há Páscoas que não precisam de ovos de chocolate e coelhinhos, porque já têm um Francisco.

Fabrício Correia é escritor, crítico de cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.

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