Jane Campion nos apresenta em “O Piano” uma história marcada pela dor, silêncio e desejo. Tudo se passa na Nova Zelândia do século XIX, onde Ada McGrath, interpretada por Holly Hunter, chega após um longo deslocamento. Muda desde os seis anos, Ada só se expressa através de seu piano e de sua filha, Flora. Elas desembarcam na praia isolada e, ao contrário do que poderiam esperar, o instrumento é deixado para trás, um gesto que sublinha a falta de interesse do futuro marido, Alisdair Stewart, pelo que realmente importa à sua nova esposa. Assim, o piano logo se torna o centro da trama, o elo entre a protagonista e o que resta de sua identidade e autonomia.
Alisdair, vivido por Sam Neill, é o típico produto de uma sociedade patriarcal, incapaz de ver Ada como algo além de uma posse. Ao contrário dele, George Baines, o personagem de Harvey Keitel, é apresentado como um homem que, apesar de inicialmente tentar negociar encontros íntimos em troca do retorno do piano, aos poucos descobre o verdadeiro valor de Ada. O relacionamento entre Baines e Ada se desenvolve de maneira peculiar, não sem incômodo, visto que, no início, Ada é forçada a participar desse acordo silencioso. No entanto, é através de Baines que Ada encontra uma nova possibilidade de comunicação, de conexão humana. Baines se revela um homem em busca de compreensão e, enquanto a música ecoa pelo território selvagem, algo de profundo se manifesta entre os dois.
O filme possui uma atmosfera única, onde a música de Michael Nyman desempenha um papel essencial. Cada nota do piano ecoa como um grito abafado, um lamento por uma liberdade perdida. Holly Hunter, que de fato tocou o piano durante as gravações, oferece uma atuação visceral. Sua Ada é uma mulher cuja força reside justamente no silêncio, um silêncio carregado de significado, de resistência. O silêncio dela não é uma fraqueza, mas uma forma de se proteger, de preservar aquilo que a sociedade ao seu redor tenta esmagar.
O silêncio de Ada também ressoa na dinâmica entre ela e sua filha Flora, interpretada de maneira impressionante por Anna Paquin. Flora é uma criança precoce, ora leal à mãe, ora manipulada pelas circunstâncias e pelas figuras de autoridade ao seu redor. A relação entre mãe e filha é uma das mais fascinantes do filme, pois, mesmo sem falar, Ada transmite à filha a noção de liberdade, de independência, algo raro em uma sociedade onde a voz feminina mal é ouvida.
Ao longo do filme, vemos a luta de Ada por se reconectar com seu piano. Ele é a chave para sua alma, a última ligação com um mundo que lhe faz sentido. O momento em que Alisdair corta o dedo de Ada é simbólico, uma tentativa brutal de silenciar aquilo que ele nunca compreendeu. É uma cena de violência extrema, não apenas física, mas emocional. É o ápice da luta pelo controle, pela voz e pelo poder dentro de um casamento onde não há espaço para a verdadeira Ada.
George Baines, ao contrário, evolui. Ele se transforma em um homem que entende o poder do que não é dito, do que é sentido nas entrelinhas. Ele aprende a ouvir não apenas a música de Ada, mas a melodia de sua alma. O piano, que inicialmente parecia ser apenas um objeto de negociação, revela-se a ponte entre dois seres humanos perdidos em um mundo que não os compreende. Quando finalmente o instrumento afunda no oceano, junto com as esperanças e feridas de Ada, o que resta é a liberdade silenciosa que ela sempre desejou.
Curiosamente, Campion escolhe uma protagonista muda para explorar o poder das emoções mais íntimas e universais. Essa escolha parece desafiadora para um público acostumado a diálogos rápidos e explicativos. No entanto, a força de “O Piano” reside justamente no que não é dito, no que é sugerido, no que flutua ao redor dos personagens, como a brisa que passa pelas árvores altas da Nova Zelândia.
O filme também subverte as expectativas em relação ao masculino e ao feminino. Enquanto Alisdair é um homem preso em sua própria rigidez, incapaz de se abrir para a sensibilidade, Baines é sua contraparte. Ele, ao longo da história, se torna um homem que não busca dominar, mas compreender. A transformação de Baines é sutil, mas fundamental. Ele começa com o desejo de possuir Ada, mas termina por amá-la em sua complexidade, respeitando seu espaço e suas decisões.
A relação de Ada com a natureza também merece destaque. As cenas na floresta, na praia, as águas escuras que engolem o piano ao final, tudo isso reforça a ideia de que Ada pertence a um mundo diferente daquele ao qual foi forçada. Ela não é uma mulher que se encaixa nos moldes sociais da época, e a natureza ao seu redor parece ser o único lugar onde ela encontra algum tipo de paz. O oceano, que no início do filme parece ser um obstáculo, torna-se no final uma espécie de libertação. Quando Ada quase afunda com seu piano, há um momento de hesitação, como se ela estivesse considerando seguir o instrumento até as profundezas. Mas, ao emergir, ela simboliza a escolha pela vida, pela continuidade.
Jane Campion dirige com uma sensibilidade rara, construindo camadas de tensão entre os personagens sem precisar de muitos artifícios. A Nova Zelândia, com sua paisagem ora desolada, ora majestosa, serve como um reflexo da própria Ada: vasta, indomada, silenciosa e cheia de segredos. O filme, em muitos aspectos, é uma jornada interna, onde a verdadeira batalha não se dá entre os personagens, mas dentro deles.
Holly Hunter, com sua atuação contida, expressa um turbilhão de emoções com um simples olhar ou um toque nas teclas do piano. Anna Paquin, mesmo sendo tão jovem na época, traz uma intensidade impressionante para Flora, uma criança que compreende mais do que aparenta. E Harvey Keitel, muitas vezes visto como o “durão” de Hollywood, surpreende com uma performance cheia de nuances, mostrando que até os homens mais rudes podem ser tocados pelo poder do amor e da arte.
“O Piano” é um filme que desafia as convenções e que, mesmo passados anos desde seu lançamento, continua a ressoar. É uma obra sobre a comunicação silenciosa, sobre a força das mulheres que se recusam a ser silenciadas, mesmo quando o mundo ao seu redor tenta apagá-las. Campion, com uma direção cuidadosa e performances extraordinárias de seu elenco, criou um filme que não precisa de palavras para ser ouvido.