Na Bíblia, Davi derruba Golias com uma pedra e um silêncio confiante. Em Joinville, o silêncio foi de outro tipo — e o gigante vestia batina.
O caso é conhecido: uma diferença de preço por dois potes de doce de leite na cafeteria Havanna, uma fala do padre Fábio de Melo nas redes sociais, a demissão sumária de um gerente. E um vídeo que, quando vazado, mostrou que a história era outra. Quem questionou o preço foi o assessor do padre, não ele. O gerente, Jair José Aguiar da Rosa, aparece nas imagens calmo, profissional, sem jamais dirigir uma palavra ao religioso. Ainda assim, perdeu o emprego — e, segundo ele próprio, teve a vida destruída pela acusação de desrespeito feita por alguém com 26 milhões de seguidores.
Fábio de Melo não é um cliente qualquer. Ele é um símbolo. Padre, cantor, pensador, celebridade. Suas palavras moldam opiniões. E quando narrou o episódio em seus stories, por mais contido que estivesse, selou o destino de um desconhecido. Não foi preciso nomeá-lo. Bastou insinuar. A força da imagem pública do padre fez o resto.
O episódio, no entanto, é menos sobre doce de leite e mais sobre liturgia — a que se faz nos gestos. Um homem que se apresenta como pastor não pode deixar de considerar o alcance da sua voz. Ainda que tivesse razão na dúvida sobre o preço, havia outro caminho. Outro tom. Outra medida. Um padre não briga pelo Código de Defesa do Consumidor como se fosse apenas mais um indignado no shopping. Ele representa algo maior. E justamente por isso, deve ser maior.
O vídeo revela uma cena prosaica: um homem de camiseta regata discute no caixa. O gerente vem, resolve, volta ao trabalho. Ninguém se exalta. O padre observa. A ele, ninguém se dirige com grosseria. Não houve escândalo. Houve consequência.
A Havanna demitiu Jair com a velocidade de quem teme perder clientes influenciados por um post. Foi mais fácil cortar o elo fraco da corrente do que aguardar a apuração dos fatos. A marca se ajoelhou diante da celebridade — e atropelou a dignidade de um trabalhador.
É justo que nos perguntemos: quantas reputações são destruídas em nome de pequenos desagravos públicos? Quantas vidas se perdem na engrenagem de um mundo onde a versão mais famosa é a que prevalece?
Fábio de Melo, que tantas vezes falou de perdão, empatia e humanidade, tem agora a chance de viver o que prega. O pedido de desculpas, o reconhecimento de um erro, o gesto público de reparação não diminuiriam sua autoridade espiritual — ao contrário, a elevariam.
Porque não se trata apenas de um gerente. Trata-se do que se espera de quem tem fé. Não basta vestir a batina. É preciso sustentar, nos dias comuns, o que ela representa. Mesmo quando se trata de algo tão simples — e tão sério — quanto dois potes de doce de leite.
Que o episódio amargo sirva de alerta. Nem toda injustiça grita. Algumas se calam diante da fama, da pressa e do medo de contrariar os grandes. E é justamente por isso que precisam ser ditas.
Fabrício Correia é jornalista, escritor, historiador e pesquisador da história das religiões. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+SBT.