Foto: Reprodução

Othon Bastos e o instante em que São José dos Campos reencontrou sua alma

Algumas cidades vivem de obras e avenidas. Outras, de gestos e vozes. São José dos Campos, por uma hora e meia, respirou o que há de mais humano: a arte como recomeço. No palco do Teatro Municipal, Othon Bastos surgiu como quem atravessa a própria eternidade. Noventa e dois anos e uma presença que não pertence mais ao tempo.

A cada palavra, parecia dizer que resistir é uma forma de amar. Que estar de pé, diante da vida e do público, é também uma oração. E que, se o corpo envelhece, a alma apenas amadurece. Othon é um desses raros homens que transformam a arte em testemunho.

Enquanto falava, a cidade,
fora do teatro, se escutava também. São José, que nos últimos meses se feriu ao ver a politicagem engolir a cultura, a vida pública de governantes se confundir com o privado, e a moralidade ser usada como espada contra a criação, de repente se viu diante de um homem que não carrega poder, mas presença. Um homem que não precisa justificar o que é, porque é tudo o que diz.

O que se viu naquele teatro foi renascimento. Othon, com o corpo frágil e a voz firme, devolveu à cidade o sentido da palavra coragem. Não a coragem dos discursos, mas a do gesto simples de continuar. Ele mostrou que recomeçar é a arte mais difícil e mais necessária de todas.

São José dos Campos viveu meses de desencontros, de silêncios impostos, de cancelamentos e equívocos. A feira literária, que deveria unir, desfez-se por intolerância. A cidade, que sempre foi motor e vanguarda, ficou subitamente sem voz. E é nesse instante, quando tudo parecia se esvaziar, um artista surge e lembra o essencial: o que nos sustenta não é o que possuímos, mas o que sentimos juntos.

O Festivale, neste contexto é um ato de salvação. Em cada apresentação, vamos presenciar uma tentativa de costurar o tecido rasgado do convívio. Othon, ao subir ao palco, tornou-se o símbolo desse remendo sagrado, mostrou que a arte é a forma mais nobre de resistência, e que o tempo pode nos envelhecer, mas nunca nos deter.

Quando as luzes se apagaram, aplausos e depois um longo silêncio de reverência. O público compreendeu que havia testemunhado algo raro: um homem que não atuava em cena, mas confessava suas entranhas. E que, de algum modo misterioso, se tornou espelho de toda uma cidade que também precisa se levantar, limpar as feridas e continuar.

São José dos Campos precisava desse sopro, que a refrescasse do progresso apressado, e trouxesse a contemplação da beleza que nos sustenta. Precisava olhar para Othon Bastos e entender que o verdadeiro poder está em permanecer humano, pois o que se constrói com alma não desaba, afinal o tempo não governa quem sabe amar o que faz.

Ontem, primavera, a arte não foi só um espetáculo, foi uma linda oração. E Othon Bastos, com a serenidade de quem já viu o mundo inteiro, nos lembrou do que realmente importa: que uma cidade só está viva quando ainda é capaz de se comover.

E foi ali, entre algumas lágrimas, muitos aplausos e o silêncio do breu da noite após o fechar das cortinas , que a minha São José dos Campos voltou a existir.

Fabrício Correia é escritor, jornalista, produtor cultural e professor universitário. Foi assessor de Gestão e Estratégia e diretor cultural interino da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, idealizador do primeiro Festival Internacional de Teatro de São José dos Campos, FIT, que comemora 25 anos de realização. Integra a União Brasileira de Escritores.

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