Ovadia Saadia: o último colunista

Ovadia Saadia é elegância convertida em caráter. No jornalismo social, preferiu a liturgia do respeito à tentação do ruído. Viu o mundo acelerar, manteve o compasso da gentileza. Escreve como quem cuida: do idioma, das pessoas, da memória.

Filho de judeus sefaraditas, nascido em Alexandria, chegou menino a São Paulo com a luz dos portos antigos nos olhos. Trouxe uma educação de convivência; onde a curiosidade jamais foi indiscrição e seu cosmopolitismo, natural, jamais sentiu a afetação e fez dele o centro de um ofício. Aprendeu cedo que observar é um gesto de lealdade; que o registro vale mais quando preserva a dignidade do retratado; que notícia, antes de ser manchete, é relação humana.

Nos bastidores do Maksoud Plaza, do Caesar Park, do WTC, encontrou uma sala de aula invisível. Executivos, diplomatas, artistas, maestros da etiqueta cotidiana: uma coreografia social que ele decifrava pelo tom de voz, jeito de agradecer, até pela pausa de um cumprimento. Desse aprendizado nasceu o colunista que rejeita a pressa e recusa a ostentação e a grosseria como método.

O grande rito de passagem, porém, teve endereço: Regine’s. A casa da noite paulistana que misturou piano francês, conversas em média luz e o tipo de glamour que nunca precisa gritar. Ali, Ovadia era mais do que anfitrião; foi a consciência do lugar. Sabia a posição das mesas como quem lê um mapa marítimo, distinguia um convidado do outro pelo perfume, pelo silêncio, pelo modo de atravessar o salão. Em volta, danças e flutes; ao centro, um profissional dedicado a manter a harmonia de um ambiente que se levava a sério. Onde muitos colecionavam presenças, ele compreendia atmosferas individuais. E transformava o efêmero em memória.

No Regine’s, aprendeu o essencial: luxo é comportamento. Não se mede em etiquetas, mas em pequenas delicadezas. Um olhar que pede licença para continuar, um garçom chamado pelo nome, um agradecimento que vale mais do que qualquer oferta financeira. Dali saiu o cronista com voz própria, capaz de olhar para a sociedade sem se curvar ao exibicionismo, atento ao gesto invisível que define um tempo.

A linhagem é conhecida: Ibrahim Sued, a senha do poder dita com polidez; Dulce Damasceno de Brito, o encanto da conversa que não humilha; Zózimo Barroso do Amaral, a nota como retrato moral da cidade. Ovadia caminha nessa avenida com passo próprio. Herdou o humor contido, a reverência ao talento, a sutileza que faz de um parágrafo um espelho. Acrescentou um elemento decisivo: a consciência de chegar depois do auge, sem nostalgia paralisante, com o dever de guardar o melhor da tradição e aparar o excesso que a corrompe.

Na Febracos, que preside, fez da entidade uma casa de princípios. Reuniu colunistas de diferentes regiões, restaurando o cuidado com a palavra impressa, cultivou vínculos de respeito entre profissionais que, por muito tempo, confundiram competição com identidade. Sua liderança dispensa megafone: ergue-se pelo exemplo. A mesma cortesia dedicada a um ministro vale para o fotógrafo, a recepcionista, o motorista. Poder, sem discrição, vira grosseria; influência, sem urbanidade, vira abuso. Ovadia não transige nisso.

Os textos trazem a respiração dos clássicos. Pontuação precisa, adjetivo comedidamente precioso, substantivo que não se esconde atrás de brilho fácil. Jamais foi seduzido pelo escândalo, admira o equilíbrio. Em tempos de cartazes e holofotes, a sua coluna é sala de leitura. O leitor vai até ela encantado pelo tom. Busca a segurança de uma voz que não exagera, não humilha, nunca usou pessoas como degraus.

A cena contemporânea quis transformar colunismo em vitrine e jornalista em protagonista. Ovadia escolheu outro caminho. Permaneceu discreto. Cumprimenta com as duas mãos, escuta antes de perguntar, agradece ao final como quem devolve uma taça de cristal. A presença dele num evento eleva o nível do ambiente; não porque chame atenção, mas porque lembra, com naturalidade, que relevância não é sinônimo de fama.

Quando evoca nomes de seu cotidiano; Hebe, Boni, Amaury, madame Règine, homenageia o que cada um deixou de estrutura: trabalho, generosidade, serviço. Memória, para ele, não serve ao saudosismo, e sim ao compromisso. O passado se usa no anel, não como armadura.

O Regine’s fechou, os grandes salões se rarefizeram, as timelines ocuparam o lugar das colunas. Ovadia continuou fiel a um método: escrever com boa-fé, preservar biografias, conter a própria vaidade. “Conteúdo” virou palavra de feira; ele insiste em conteúdo como substância ética. A profissão que exerceu na noite; a de guardião da harmonia, migrou para o texto. Trocar a discoteca pelo lead, a mesa pela linha, o coquetel pela edição: esta é a travessia que fez sem alarde.

Chamá-lo de “o último” não pretende encerrar uma história, mas apontar um padrão. Ovadia demonstra que o colunismo vale quando se converte em documento de comportamento. Cada nota é uma pequena escola de civilidade; uma proteção.

O Brasil se acostumou a confundir brilho com estridência. Ovadia nos lembra, com naturalidade, que brilho mesmo não faz barulho. Essa lição, aprendida entre Alexandria, hotéis paulistanos e o Regine’s, sustenta uma biografia sem arestas de espetáculo.

Talvez resida aí o segredo de sua permanência. Ovadia escreve para que o amanhã encontre, no arquivo, um caminho de volta à boa educação. Se um dia for preciso explicar por que o colunismo brasileiro mereceu respeito, bastará reler sua obra com atenção.

Fabrício Correia é jornalista, escritor, professor universitário. Apresentador e diretor de televisão atua na Jovem Pan e no SBT, afiliada interior de São Paulo. É membro da FEBRACOS  e da União Brasileira de Escritores. Integra a Academia Brasileira de Cinema.

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