Foto: Reprodução

Pré-estreia: “O Agente Secreto” – Rito de sombras no Brasil que esquece

Tudo em “O Agente Secreto” nasce de uma inquietação que não cessa. Não é apenas a perseguição de um homem que tenta sobreviver à máquina do Estado. É a própria alma do país tentando escapar de um destino de esquecimento. Kleber Mendonça Filho constrói um thriller que se recusa à pressa e prefere o gesto demorado do olhar. O Brasil de 1977 que ele filma é um território suspenso, uma paisagem onde a mentira é norma e a memória é crime.

Wagner Moura caminha por esse labirinto como quem se move dentro de uma ferida. Seu Marcelo, nome de exilado dentro de seu próprio país, é um homem cansado, mas não vencido. Há em seu rosto uma espécie de paciência amarga, de quem entende que fugir é apenas outra forma de resistir. A cidade o cerca com seus becos e suas luzes gastas, como se Recife fosse um corpo antigo que ainda guarda o calor dos que desapareceram.

Kleber faz de cada plano um gesto de resgate. O cinema São Luiz, com suas paredes que respiram histórias, é o centro desse feitiço. Ali, entre o murmúrio dos ventiladores e o pó iluminado, o diretor devolve sentido ao ato de ver. As imagens tornam-se o refúgio de quem que tenta preservar o que o poder insiste em destruir.

A trama é feita de silêncios. O perigo está sempre próximo, mas raramente visível. O inimigo não usa uniforme. É o próprio ar da época. Documentos somem, vozes se apagam, vidas são corrigidas nos relatórios. Mendonça entende que a violência mais profunda é a que reescreve o passado.

Os personagens orbitam Marcelo como fragmentos de um mesmo naufrágio. Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Alice Carvalho e Tânia Maria formam um mosaico de lealdades partidas. Tânia, com sua dona Sebastiana, é a centelha humana do filme. Ri, comenta, intui o perigo, mas não tem poder algum além da palavra. E talvez seja esse o dom do filme: transformar a fala simples de uma senhora fofoqueira em resistência.

Nada é dito em excesso. A beleza vem do intervalo entre as frases, do som distante dos passos, do vento que atravessa uma janela aberta. O filme avança com a calma dos que sabem que pressa é privilégio de quem não teme ser apagado. Mendonça filma o Brasil como quem tenta acordar um país adormecido dentro de outro.

O final deixa uma melancolia que não se resolve. Não há vitória nem derrota, apenas o eco de algo que continua. “O Agente Secreto” não fecha suas portas. Permanece em suspensão, como o próprio país que ainda procura entender o que perdeu. E é nesse estado de vigília que o filme se torna necessário.

Kleber Mendonça Filho reafirma que filmar é lembrar. E que lembrar, neste país, é sempre um ato perigoso.

Fabrício Correia é escritor, jornalista e professor universitário. Crítico de cinema, integra a Academia Brasileira de Cinema.

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