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Raul Gil e as violências contra nossos idosos

O Brasil envelhece diante de nossos olhos, e com ele deveria amadurecer também a consciência social de que a velhice não é uma etapa de exclusão, mas de respeito. No entanto, os fatos recorrentes, públicos e privados, mostram o contrário: quando a idade chega, é comum que o idoso se torne alvo daquilo que o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) já nomeia sem rodeios: violência patrimonial, psicológica e moral.

O caso de Raul Gil, um dos apresentadores mais conhecidos do país, escancarou o tema em rede nacional. Um patriarca, exposto em disputas entre filhos e netos, obrigado a vir a público se defender, pedir paz e reafirmar que seu amor não muda. Quando até um homem de sua projeção precisa gravar vídeos para justificar sua própria história, o que acontece, então, com os anônimos, invisíveis, que não têm voz, nem câmera, nem audiência?

O silêncio é a forma mais cruel da violência na velhice. Ela não se mede por hematomas, mas pela interdição do afeto, pelo afastamento de familiares, pelo controle sobre bens e decisões que pertencem ao idoso. A lei é clara: o artigo 3º do Estatuto assegura ao idoso “todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”. O artigo 4º reforça: “Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.”

Na minha própria família, vi acontecer o que os livros chamam de “violência patrimonial”. O irmão da mãe dos meus filhos a afastou do convívio, levou-a para uma cidade distante e passou a controlar sua vida e seus bens. Sob o disfarce do cuidado, instituiu-se o domínio. Afastou-se mãe, avó, irmã, mulher e em seu lugar ficou uma espécie de figura tutelada, como se já não tivesse direito de decidir, de conviver, de escolher. Isso é mais do que injustiça: é crime.

O artigo 102 do Estatuto do Idoso prevê pena para quem se apropriar ou desviar bens, rendimentos ou benefícios. O artigo 99 tipifica como crime expor a perigo a integridade e a saúde física ou psíquica do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes. E essa violência se demonstra na maioria das vezes no domínio psicológico.

O problema é que, enquanto a lei escreve, a sociedade se cala. Muitos acreditam que “é normal” um parente tomar as rédeas da vida do idoso. Não é. A lei garante que ele continue sujeito de sua própria história. Cuidar é proteger, não sequestrar; amparar é estar junto, não isolar. O que chamam de “decisão prática” frequentemente é a retirada da autonomia de alguém que ainda tem voz, memória e desejo.

O idoso tem direito à convivência familiar e comunitária (artigo 19). Tem direito a ser ouvido nas decisões sobre sua vida. Tem direito a manter seus vínculos afetivos. Quando esses direitos são violados, não é apenas um indivíduo que sofre é a sociedade que falha em enxergar o que ela mesma será amanhã.

É preciso falar disso sem pudor. A violência contra idosos não é exceção, é rotina disfarçada de cuidado. O Estatuto existe para garantir dignidade, mas só tem força quando a própria família e a comunidade reconhecem que envelhecer não significa perder o direito de existir plenamente.

A velhice deveria ser um tempo de colheita, de histórias contadas, de netos ao redor, de liberdade de escolher como e com quem se quer viver. Mas, quando vira tempo de disputas e usurpações, é um espelho do nosso fracasso como sociedade.

O que se exige não é apenas cumprimento da lei, mas uma mudança de mentalidade: parar de ver o idoso como peso ou patrimônio a ser gerido, e assumir que ele continua sendo o que sempre foi ; sujeito de direitos, dono de si, merecedor de respeito.

Fabrício Correia é jornalista, escritor e professor universitário com o especialização em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão.

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