O Brasil sepulta seus ídolos com pressa. Há uma cerimônia tácita que transforma vozes indomáveis em mitos domesticados, encaixados em prateleiras de colecionadores, ressignificados para consumo. Renato Russo não aceitou esse destino. E o país, por sua vez, também não soube o que fazer com ele. Enterrou o corpo. Mas nunca conseguiu silenciar a obra.
Se tivesse chego aos 65, não seria recebido com festividades. Não haveria sarau em sua homenagem, nem participação sorridente em programa matinal. Seria olhado com a mesma inquietação que provoca o que nunca se acomoda. Porque sua presença continua densa, pulsando como ameaça.
Em um país acostumado a idealizar a juventude como mercadoria, Renato entregou à música popular a brutalidade do pensamento. Sua arte nunca pediu cumplicidade. Não se dirigia ao público com a linguagem do agrado. Preferia a fratura. Deixava entreaberta a porta onde a verdade sangrava. Cada verso, um gesto sem disfarce.
Ele escreveu “nos deram espelhos / e vimos um mundo doente” como quem revela um segredo ancestral. Não buscava criar imagens. Desfazia as que estavam prontas. Brasília, sua cidade, serviu de metáfora: organizada, projetada, asséptica — mas cheia de fendas invisíveis. Foi dentro dessas fendas que Renato gritou. E seu grito reverbera até hoje.
Há nas letras que deixou um Brasil inteiro implodindo por dentro. Um país com aversão à introspecção, às conversas difíceis, à escuta real. Ele escancarou tudo o que se tenta esconder. A hipocrisia religiosa, o moralismo travestido de virtude, a sexualidade reprimida, o patriotismo oco. Não para gerar polêmica. Para dar nome ao que sufoca.
Renato não construiu hinos. Costurou diagnósticos. Não teve a preocupação de ser entendido. Escolheu ser necessário. Seus versos não vinham de lugares seguros. “Vamos celebrar a estupidez humana” soa como escárnio, mas é crônica. Descreve a euforia paralisante de uma nação anestesiada. E o mais perturbador: continua atual.
Mesmo o amor, quando cantado por ele, parecia escrito em último grau de urgência. Não havia amparo. Só a vertigem da entrega. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” carrega o peso do aviso — não da esperança. Há, nesse verso, a consciência de que não haverá tempo para reparos. Porque não há tempo mesmo.
A juventude que se via representada em sua obra não era triunfante. Era órfã. Uma juventude que se via nas entrelinhas: solitária, exausta, sem tutores. Renato não propôs soluções. Apenas expôs os escombros. “Nossos sonhos são os mesmos há tanto tempo / Mas não há mais muito tempo pra sonhar” não é nostalgia. É epílogo.
Ele não se ocultou. Falou do próprio corpo, do HIV, da homossexualidade, da fé em crise. E falou com a nitidez dos que não pedem clemência. Não exigia ser compreendido. Apenas não suportava mais o silêncio. Sua exposição não era performance. Era necessidade. Não queria palcos. Precisava de testemunhas.
A voz de Renato era irregular. Sem ornamentos. Tensa. Às vezes, falhava. Mas possuía a gravidade dos que atravessam o inferno conscientes. Ele não queria que o público cantasse com ele. Queria que escutasse. Nem sempre foi atendido. Foi vaiado, mal interpretado, usado como ícone para causas que jamais encampou. Mas seguiu.
E quando já não conseguiu mais seguir, deixou “A Tempestade”. Aquele disco soa como a travessia de um homem em ruínas. Frases interrompidas, preces desidratadas, um canto esgotado. Não há adeus. Há apenas um fim que se aproxima e é aceito. O Brasil assistiu à sua morte sem entender o que estava perdendo. E continua sem saber.
Hoje, ao ouvirmos suas letras, não encontramos passado. Encontramos espelho. Não há nada datado. Há feridas que ainda não cicatrizaram. “São só palavras / e o que eu sinto não mudará” ainda nos acusa. Porque continuamos tentando reduzir Renato à vitrine de uma geração, quando ele escreveu para o país inteiro.
Renato Russo faria 65 anos. Não há como imaginar o que estaria dizendo. Talvez estivesse recolhido, decepcionado com a conversão da indignação em produto. Talvez estivesse escrevendo. Talvez estivesse calado. Não importa. A ausência dele não foi preenchida por ninguém. Porque ninguém mais escreveu com tanta carne, com tanta lucidez, com tanta urgência.
O país continua o mesmo. A juventude continua órfã. A esperança, adiada. E por isso, sua obra não é saudade. É sintoma. Um incômodo que não passa. Uma lembrança que não se acomoda. Uma cicatriz que se recusa a fechar.
E talvez, no fundo, seja esse o maior gesto político que um artista pode deixar: continuar insuportável mesmo depois de morrer.
Fabrício Correia é escritor, crítico de
cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.