Foto: Divulgação

Apple TV: “O Aprendiz”: A anatomia de um Narciso

Ali Abbasi não fez só um filme, nos apresenta uma sentença. “O Aprendiz” não se contenta em narrar a trajetória de um jovem ambicioso que almeja o topo; ele investiga, com precisão cirúrgica, o esvaziamento de um homem em nome da glória. Se Donald Trump se tornou um nome que dispensa apresentações, é porque sua ascensão foi meticulosamente construída sob três princípios: questionar a verdade, nunca admitir a derrota, e vencer a qualquer custo. Essa trindade profana, ensinada por Roy Cohn, ressoa em cada fotograma do filme como um eco de tragédia shakespeariana, mas sem a grandeza moral de um Macbeth ou Ricardo III. Aqui, não há a grandiosidade do dilema, apenas a determinação cega de alguém que troca qualquer resquício de humanidade pela miragem do sucesso absoluto.

O que Abbasi e o roteirista Gabriel Sherman fazem é desconstruir o mito com as próprias ferramentas que ele usou para se construir. Não há concessões ao carisma, ou espaço para a simpatia involuntária que biografias cinematográficas frequentemente despertam mesmo nos piores personagens. O Donald Trump de Sebastian Stan, indicado ao Oscar pelo papel, não é o showman dos palanques nem o magnata midiático dos anos 80. Ele começa o filme como um jovem inexperiente e impressionável, perdido entre arranha-céus e corredores sombrios de um mundo onde a ética é uma piada de mau gosto. À medida que avança sob a tutela de Roy Cohn, interpretado por um Jeremy Strong absolutamente assustador, ele se transforma em algo distinto: uma criatura moldada pelo cinismo, pelo medo de ser visto como fraco e pela necessidade obsessiva de domínio.

A câmera de Abbasi opera com um senso de intimidade invasiva nos momentos iniciais. Ela não observa Trump, ela o persegue. Há uma sensação de voyeurismo em sua insegurança, em sua busca quase infantil por aprovação, em sua ânsia de provar que pertence a um mundo que nunca lhe deu boas-vindas. A fotografia granula Nova York como um campo de batalha moral onde tudo pode ser comprado, desde imóveis até juízes. A cidade, algo comum nos filmes desta safra, é um personagem tão relevante quanto Trump ou Cohn, uma selva fria onde a única lei é a do mais ardiloso. O diretor opta por uma estética que remete aos filmes políticos dos anos 70, como “Todos os Homens do Presidente”, mas sem o alívio de heróis genuínos. Aqui, só há vilões.

Quando Trump finalmente absorve as lições de Cohn, a câmera se distancia. Ele não é mais um homem a ser compreendido, mas um monólito de ambição. Sua presença cresce em cena, seus gestos se tornam mais rígidos, sua voz mais assertiva. A montagem acompanha essa metamorfose de maneira quase imperceptível, até que nos damos conta de que não estamos mais assistindo a um jovem buscando aprovação, mas a um predador que aprendeu a gostar do sangue fresco da caça. A ascensão de Trump não é mostrada como um triunfo, mas como um processo irreversível de desumanização.

A grande sacada do filme é nunca transformar Trump em vítima. Ele poderia ter seguido outro caminho? Talvez. Mas a obra nunca sugere isso como uma possibilidade real. Seu aprendizado é um pacto. Ele não é arrastado para a lama por Roy Cohn; ele pula de cabeça. A relação entre os dois é um espelho sombrio do mito do mentor e aprendiz. Cohn não quer que Trump seja apenas bem-sucedido. Ele quer que Trump seja como ele, e o sucesso para Cohn é a ausência total de moralidade. A química entre Jeremy Strong e Sebastian Stan sustenta o filme com uma força esmagadora. Há uma tensão latente em cada diálogo, uma dança de manipulação onde o aprendiz se torna cada vez mais parecido com o mestre até o ponto em que já não há diferença entre os dois.

Maria Bakalova, no papel de Ivana Trump, oferece a perspectiva mais próxima de uma bússola moral na narrativa, mas até ela é tragada pelo vórtice de ego e brutalidade que se forma ao redor do protagonista. Sua presença serve como um lembrete de que, para Trump, tudo é transacional, inclusive os relacionamentos. No entanto, o roteiro não se preocupa em desenvolver uma dinâmica entre marido e esposa que evoque qualquer vestígio de ternura. Não há respiros sentimentais em “O Aprendiz”. Mesmo os momentos privados são apresentados com uma frieza cirúrgica, como se a câmera estivesse documentando uma experiência laboratorial.

O grande trunfo da narrativa é sua estrutura. O filme é um estudo de caráter, não há sequências construídas para justificar ou condenar Trump. Ele é mostrado em sua nudez moral, sem adornos, sem maquiagem. O roteiro se mantém fiel à ideia de que Trump não é um enigma a ser decifrado, mas sim um fenômeno a ser analisado. E essa escolha se reflete na montagem, que gradualmente transforma a perspectiva do espectador. Se no início estamos dentro da bolha do protagonista, no final somos mantidos a uma distância calculada. Ele já não é mais alguém a ser compreendido, mas sim um retrato daquilo que o poder pode fazer com quem nunca teve a firmeza de caráter para resistir ao seu apelo mais sombrio.

A última parte do filme, que cobre os anos finais de Roy Cohn e a transição de Trump para um magnata totalmente formado, opera quase como uma epígrafe sombria para a trajetória que seguimos até ali. Cohn morre, mas seu legado permanece. Trump não precisa mais de seu mestre porque ele próprio já se tornou uma entidade maior do que qualquer mentor poderia aspirar. A separação entre os dois não é dramática, nem catártica. Ela acontece porque precisa acontecer. O aprendiz superou o professor. E o filme deixa claro que, ao contrário do que acontece em narrativas clássicas, isso não significa progresso, mas sim a perpetuação de um ciclo de brutalidade, oportunismo e culto à própria imagem.

“O Aprendiz” não tenta responder se Trump acredita em suas próprias mentiras. O filme não se interessa por dilemas éticos internos porque entende que eles não existem. No universo que Abbasi constrói, a verdade é irrelevante. O que importa é a percepção, o espetáculo, a ilusão da força. Essa é a grande ironia da obra: Trump é um homem que se vê como um titã indestrutível, mas cuja maior vitória é apenas convencer o mundo de que ele jamais pode ser derrotado.

No final, o que “O Aprendiz” nos entrega é um retrato de fenômeno. De uma era. De uma sociedade que, de alguma forma, permitiu que alguém como Donald Trump se tornasse não apenas uma figura influente, mas um arquétipo do sucesso moderno. O filme não fecha suas portas com uma grande lição de moral, porque seria inútil. Não há redenção aqui. Apenas um olhar cirúrgico e impiedoso sobre a anatomia de um narcisista que aprendeu sua lição melhor do que qualquer um poderia prever. God Bless America.

WhatsApp
Facebook
Twitter