Val Kilmer foi um corpo estranho no sistema hollywoodiano. Não por falta de talento ou presença de tela — ambas estavam lá desde o início — mas por sua insistência em não seguir os caminhos convencionais da indústria. Seu percurso representa, de forma exemplar, a tensão entre o ator-estrela e o ator-artista, entre o sistema de estúdios e a autonomia criativa.
Formado na Juilliard, Kilmer iniciou sua trajetória com uma base teatral sólida, que contrastava com sua entrada no cinema por meio de comédias como “Top Secret!” (1984). O sucesso veio com “Top Gun” (1986), onde interpretou o rival gelado de Tom Cruise, Iceman, papel que rapidamente o inseriu no circuito dos astros de ação. Mas, ao contrário de outros colegas de geração, Kilmer não se acomodou no estereótipo.
A partir dos anos 1990, ele buscou papéis que exigiam uma imersão completa: em “The Doors” (1991), não apenas interpretou Jim Morrison — estudou obsessivamente seus gestos, voz e presença de palco. Em “Tombstone” (1993), construiu um Doc Holliday quase expressionista, entre o deboche e a morbidez. E em “Batman Eternamente” (1995), assumiu o manto do herói com uma abordagem mais contida e introspectiva — algo que não agradou parte do público, mas que hoje é visto como um experimento interessante diante do tom kitsch do filme.
O que torna Kilmer um caso emblemático é a forma como ele oscilou entre grandes produções e filmes de menor apelo comercial sem alterar sua entrega. Em “Fogo Contra Fogo” (1995), atua ao lado de Al Pacino e Robert De Niro sem se tornar coadjuvante apagado — participa da dinâmica da narrativa com precisão. Em “O Santo” (1997), carrega o filme sozinho, com múltiplas personas, mostrando habilidade com personagens ambíguos e transformações físicas.
Com o tempo, conflitos com diretores e produtores o afastaram dos grandes projetos. Foi taxado de “difícil”, rótulo comum a atores que resistem ao controle total dos estúdios. Sua recusa a atuar em “modo automático” custou papéis e visibilidade. Ainda assim, sua filmografia é marcada por escolhas ousadas, que desafiaram o mercado e a expectativa de audiência.
Sua luta contra o câncer de garganta — e a perda da voz — acentuaram esse deslocamento do circuito central. Mas em vez de desaparecer, Kilmer reposicionou-se. O documentário “Val” (2021), construído com registros pessoais, é um exemplo de metalinguagem cinematográfica rara: o ator se transforma em autor de sua própria narrativa, rompendo com a lógica da imagem construída por terceiros.
Val Kilmer representa um tipo de ator cada vez mais raro: aquele que não aceita a identidade de produto, mesmo sendo parte da engrenagem de Hollywood. Ele habitou o cinema de gênero com rigor técnico e atravessou diferentes estéticas sem perder coerência. Foi um ator múltiplo, com domínio de linguagem e fisicalidade, que lidou com a fama sem se prender a ela.
Seu legado é menos sobre bilheteria e mais sobre complexidade de atuação. Um performer que entendia a câmera como parceiro e a imagem como camadas. Val Kilmer desafiou o formato do herói clássico e ampliou o repertório do ator mainstream. Em um sistema que valoriza o previsível, ele insistiu em ser imprevisível — e isso o torna essencial para qualquer análise sobre atuação nos últimos 40 anos de cinema americano.