Foto: Arte digital

“Vale Tudo”: Uma reflexão sobre o espelho partido do Brasil

Entre 1988 e 2025, a mesma pergunta ecoa: vale a pena ser honesto?

Poucas obras na história da televisão brasileira conseguiram atravessar gerações mantendo sua pertinência como a novela “Vale Tudo”. Em 1988, quando foi exibida pela primeira vez, ela não apenas apresentou uma trama envolvente, mas lançou uma questão que continua martelando no imaginário nacional: vale a pena ser honesto no Brasil? Trinta e sete anos depois, a adaptação de 2025 não surge como simples homenagem, mas como renovação de um espelho — agora partido, multifacetado, onde o país se revê em fragmentos.

A novela original nasceu num contexto histórico decisivo. Em 1988, o Brasil vivia a redemocratização, elaborava uma nova Constituição e experimentava o alvorecer de uma sociedade civil que se queria mais justa, transparente e ética. E então veio Vale Tudo como um tapa na cara do otimismo. Gilberto Braga, Leonor Bassères e Aguinaldo Silva criaram não apenas uma obra ficcional, mas um diagnóstico implacável: o país que ressurgia das sombras ainda carregava a doença moral de sempre — o culto ao jeitinho, à esperteza, à vantagem individual acima do bem coletivo.

Raquel Accioli, a mãe batalhadora e honesta, e sua filha Maria de Fátima, arrivista social disposta a tudo, não eram apenas personagens opostos: eram as forças morais em disputa no Brasil real. Raquel acreditava no trabalho, na retidão, na justiça. Fátima, na conveniência, na sedução e no oportunismo. A novela deixou claro que o embate entre essas duas forças não era apenas familiar — era estrutural, visceral e coletivo. Foi uma aula de sociologia disfarçada de folhetim.

Em um plano psicanalítico, Maria de Fátima representava o inconsciente pulsional de uma sociedade que reprime seus desejos com culpa, mas que admira quem rompe as regras e vence. Fátima é filha de Raquel, mas simbolicamente deseja “matar” a moral da mãe. Ao trair seus valores, vende sua casa, rouba seus sonhos e tenta apagar o espelho da virtude. É a transgressora que o Brasil pune com a boca, mas admira com os olhos. Já Raquel é a idealização da ética cristã, da honra materna, da esperança moral — mas, ao longo da trama, ela também é testada, quase sucumbe, pois o mundo ao redor parece premiar o contrário.

E o que dizer de Odete Roitman? Rica, branca, culta, racista, cruel. Sua figura simboliza a elite predadora, arrogante e imune à lei. Odete representa o superego degenerado de um país em que o privilégio se confunde com impunidade. Sua morte, um dos maiores mistérios da televisão, não foi punição moral — foi um acaso, um erro trágico. A ironia cruel: ela não foi assassinada por justiça, mas por engano. Até na morte, escapou do julgamento que merecia.

O final da novela foi, para muitos, perturbador: os vilões saíram ilesos ou triunfantes. Marco Aurélio fugiu num jatinho privado, fazendo uma “banana” ao Brasil. Maria de Fátima casou-se com um príncipe e enriqueceu. O crime compensou. A honestidade ficou com a porta na cara. Essa escolha narrativa, longe de ser imoral, foi uma denúncia: a novela não queria consolar, queria inquietar. Mostrou que, no Brasil, às vezes a ficção é menos dura que a realidade.

A força de “Vale Tudo” estava em sua coragem. Ela não fazia concessões, não entregava vilões unidimensionais nem mocinhas santificadas. Ivan, o homem honesto, também se corrompe. Heleninha, vítima da mãe Odete, afunda-se no álcool. O realismo psicológico substituía o moralismo superficial. A novela era uma análise psicanalítica de um país adoecido, que projetava seus traumas, recalques e desejos nos personagens.

Mas o que mudou de 1988 para 2025?

O Brasil de hoje já não é aquele de Sarney e inflação galopante. É um país digitalizado, polarizado, hiperconectado, onde escândalos de corrupção vêm e vão como memes. A era do jeitinho deu lugar à era da desinformação. A manipulação mudou de formato: saiu dos bastidores empresariais e ganhou perfil verificado nas redes. O cinismo, antes velado, agora é exibido em lives. A impunidade continua, mas com filtro de Instagram.

Por isso, a nova versão de “Vale Tudo” em 2025 tem uma missão que vai além da homenagem: precisa renovar a crítica, trazer as novas formas de corrupção — inclusive simbólicas — que infestam o presente. E tudo indica que está no caminho certo. Maria de Fátima agora é influenciadora, símbolo da geração que sonha com a fama instantânea e a monetização da imagem. Uma nova Fátima, mas com a mesma fome. Uma nova Raquel, agora negra, interpretada por Taís Araujo, numa escolha histórica que marca não apenas uma virada estética, mas também política, representativa. Raquel, negra e honesta, enfrentará não só o cinismo moral, mas o racismo estrutural que em 1988 sequer ousava ser representado com clareza.

A presença de personagens LGBTQIAPN+ com protagonismo verdadeiro, o uso da linguagem mais sensível em temas como alcoolismo, e a abordagem da saúde mental mostram que a nova versão carrega um olhar mais humano e atento à complexidade dos sujeitos.

Sociologicamente, o Brasil de 2025 continua sendo o país da desigualdade, mas agora com novos códigos. A ascensão social é digital, a moralidade é performada, a ética é negociada em tempo real. O remake precisa não apenas repetir os dilemas do passado, mas ampliá-los: como resistir ao cinismo num mundo em que todos os valores parecem relativizados? Como manter a integridade em uma sociedade que premia a visibilidade mais do que a verdade?

Culturalmente, “Vale Tudo” é um espelho. Mas um espelho rachado. Em 1988, ele já mostrava uma sociedade cindida. Em 2025, o espelho se tornou tela de celular — e a rachadura aumentou. A nova novela carrega consigo a oportunidade de fazer com que o espectador enxergue não só os outros, mas a si mesmo. Porque, no fundo, é isso que sempre fez: nos obrigou a perguntar se, em determinadas circunstâncias, nós também venderíamos a casa da mãe.

Em tempos de fake news, impunidade tecnológica, justiça seletiva e crise de confiança institucional, a pergunta ressoa com ainda mais força: vale a pena ser honesto? A resposta ainda está em aberto. Mas a novela, com sua coragem renovada, talvez nos ajude a encarar essa dúvida com mais lucidez. Porque se a arte não salvar o espelho, talvez ele se estilhace de vez.

E então, não teremos mais nem o reflexo.

 

Fabrício Correia é escritor, crítico de
cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.

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