Foto: Divulgação

Estreia: “Valor Sentimental”, a forma como ferida

É um erro frequente tratar drama familiar como um assunto de sentimentos, como se bastasse reunir mágoas antigas, alguns reencontros e uma dose de choro para que o cinema cumprisse seu dever, e “Valor Sentimental” cresce justamente por escolher outro caminho, porque entende que família é, antes de tudo, uma questão de linguagem, de enquadramento e de distância, de como um corpo se retrai diante do outro, de quanto silêncio cabe entre duas frases aparentemente educadas, de como a casa não serve de cenário, serve de arquivo, e por isso o dado decisivo do filme não é apenas o pai ausente, é o pai cineasta, Gustav, homem acostumado a transformar vida em material, que retorna às filhas com o gesto que domina, oferecendo à própria filha, Nora, atriz de teatro, o papel principal de um novo filme, como se o cinema pudesse funcionar como reparação sem a nudez de um pedido direto, como se representar fosse mais suportável do que estar.

Trier filma dentro de uma tradição escandinava que não usa o frio como decoração, usa o interior como método, e Bergman atravessa “Valor Sentimental” sem precisar aparecer como citação, porque a família volta a ser máquina de culpa e de reconhecimento, porque o embate se dá na precisão de uma pausa, na crueldade de uma gentileza, na tensão entre amor e controle, lembrando o modo como “Sonata de Outono” e “Cenas de um Casamento” faziam do convívio um tribunal doméstico, só que aqui o conflito se atualiza pela fricção entre teatro e cinema, entre a presença do palco, que exige corpo inteiro e tempo contínuo, e a captura do enquadramento, que recorta, escolhe, fixa e, às vezes, substitui.

Renate Reinsve compõe Nora como alguém que pensa com lucidez e sente com atraso, como se cada frase precisasse atravessar uma parede antiga antes de chegar à boca, e Stellan Skarsgård dá a Gustav um carisma perigoso, capaz de parecer afetuoso mesmo quando está, na verdade, reorganizando o mundo ao redor de si, e o filme atinge uma crueldade moderna quando a recusa de Nora não interrompe o projeto, apenas o redireciona, outra atriz pode ocupar o lugar, o filme dentro do filme segue adiante, e essa substituição deixa de ser intriga de bastidor para se tornar metáfora íntima, o mundo continua, a obra continua, alguém entra no quadro, e o quadro permanece, como se certas ausências tivessem sido, desde sempre, administradas com eficiência.

E a experiência de ver “Valor Sentimental” tem algo de físico, porque não é um filme que se assiste apenas com atenção, é um filme que exige postura, exige silêncio interno, exige que a gente aceite a duração de uma cena como quem aceita uma conversa difícil sem mexer no celular, e, em vários momentos, a sensação é a de estar sentado muito perto de alguém que você ama e de quem você se afastou, perto o bastante para ouvir a respiração e, ainda assim, longe demais para tocar, e o desconforto não vem de choque ou de exagero, vem do reconhecimento, vem da maneira como o filme encontra aquele ponto exato em que a memória deixa de ser lembrança e vira presença, e a sala escura se transforma numa casa onde há portas fechadas que ninguém abre sem medo do que pode sair de dentro.

Quando as luzes acendem, o que fica não é uma catarse pronta, é uma claridade fria, dessas que não aquecem, mas revelam, e revelam que a beleza pode dar forma à ferida, pode iluminá-la com rigor e até com delicadeza, mas não a substitui, e talvez seja essa honestidade, essa recusa de consolar com facilidade, o motivo pelo qual “Valor Sentimental” sai do cinema junto com a gente, como uma voz baixa que continua falando enquanto a cidade segue.

⭐️⭐️⭐️⭐️

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