Miguel Falabella, com “Veneza”, cria uma obra profundamente enraizada na alma humana e nas escolhas que a vida nos impõe, convidando-nos a refletir sobre os caminhos que tomamos e os que deixamos para trás. Sua sensibilidade, sempre atenta à complexidade das relações e dilemas cotidianos, atinge um novo patamar nesta fábula visual, onde o ordinário se eleva ao poético. Falabella nos convida a mergulhar nas águas turvas da memória, da saudade e da redenção — elementos presentes em sua trajetória artística.
A trama acompanha Gringa, interpretada de maneira sublime por Carmen Maura. Uma prostituta cega e envelhecida, à beira da morte, que sonha em reencontrar o amor perdido de sua juventude em Veneza. Contudo, a cidade não é apenas um destino físico, mas um símbolo de tudo que ela deixou para trás, de sonhos não realizados e desejos ainda latentes. Com uma atmosfera de sonho e uma narrativa que flutua entre o real e o imaginário, o filme oferece uma viagem interior, onde Gringa, assim como os personagens ao seu redor, busca resgatar o que o tempo e a vida pareciam ter lhe negado.
Além da marcante Carmen Maura no papel de Gringa, o filme conta com atuações de destaque como as de Dira Paes, Eduardo Moscovis e Carol Castro. Cada um deles enriquece a trama com performances que exploram a profundidade emocional de seus personagens. Dira Paes, como a fiel amiga de Gringa, traz sensibilidade e força, enquanto Eduardo Moscovis, sempre enigmático, adiciona camadas de mistério à narrativa. Carol Castro, por sua vez, interpreta Madalena, uma jovem prostituta que se vê envolvida nos conflitos internos de todos ao seu redor, especialmente do menino interpretado por Caio Manhente, que sonha em se tornar travesti. A relação entre os dois personagens se desenvolve com uma intensidade tocante, abordando questões de identidade e pertencimento de forma poética e dolorosa. Essa linha narrativa, envolvendo a descoberta de quem se é em um ambiente tão brutal, traz uma dimensão de vulnerabilidade e esperança, equilibrando a dureza da vida com a persistência dos sonhos.
Ao longo de sua carreira, Falabella destacou-se por iluminar as vidas comuns e suas nuances, e “Veneza” refina esse olhar. Aqui, ele explora a fronteira entre a realidade e a fantasia, mostrando que, por mais árida que a vida se apresente, sempre há redenção nos sonhos. Veneza, com sua beleza decadente, emerge como o símbolo máximo do que os personagens desejam — uma utopia de afeto e memória que parece sempre distante, mas que, ao ser perseguida, os transforma.
Visualmente, “Veneza” é um espetáculo. A fotografia de Gustavo Hadba utiliza tons quentes para criar uma atmosfera onírica, quase mística, que contrasta com a dureza da realidade vivida pelos personagens. Quando a cidade de Veneza finalmente aparece, ela é envolta em uma aura dourada e mágica, reforçando seu papel como paraíso inalcançável, mas ainda desejado. A direção amplifica o impacto emocional da narrativa, com cenas que se fixam na mente do espectador como pinturas repletas de melancolia e beleza.
O verdadeiro poder de “Veneza” reside na abordagem do tema da redenção. Para Gringa, a viagem à Veneza é uma tentativa de corrigir os erros do passado e de reencontrar o que foi perdido. Contudo, como na vida, a jornada não é simples. O filme nos lembra que, muitas vezes, o que buscamos está dentro de nós, e não no destino que almejamos. Essa reflexão, presente de maneira sutil ao longo do filme, é uma das marcas registradas do diretor: a capacidade de transformar uma história pessoal em algo universal, que ressoa profundamente no espectador.
A trilha sonora de Josimar Carneiro complementa a experiência, elevando as emoções sem sobrecarregar a narrativa. A música serve como um fio condutor, guiando o público pelos altos e baixos emocionais da trama e refletindo os sentimentos mais íntimos dos personagens.
“Veneza” é uma obra que se recusa a ser categorizada de forma simples. Ao mesmo tempo em que é um drama sobre perda, também é uma fábula sobre a persistência do espírito humano. Falabella nos mostra que, mesmo em meio à escuridão, há luz e possibilidade de redenção. O filme celebra o poder dos sonhos, da memória e do amor, nos lembrando que, por mais que a vida nos afaste do que desejamos, sempre podemos buscar nossa própria Veneza, mesmo que ela exista apenas em nossos corações.